Denúncias sobre horrores da rota Recife-Fernando de Noronha, feitas pelo Sindmar, resultam em fiscalização de empresas de transporte marítimo por diversas autoridades
Destino turístico que figura entre os mais exclusivos e caros do Brasil, tendo recebido em 2022 o número recorde de 149,8 mil visitantes, o arquipélago de Fernando de Noronha revelou um lado obscuro e desconhecido da maioria das pessoas. No fim de março, a representação sindical marítima tomou conhecimento, por meio de denúncias, de uma sucessão de naufrágios ocorridos na última década envolvendo embarcações que fazem o tráfego comercial doméstico entre o continente e o arquipélago.
Esses barcos de carga transportam basicamente material de construção e itens de consumo que possibilitam o funcionamento do paraíso turístico. A navegação nesse trecho ocorre em mar aberto, numa distância de 294 milhas náuticas (540 km), percurso que pode durar mais de 24 horas. Segundo apuração do Sindmar, nos últimos anos foram registrados os naufrágios de pelo menos sete embarcações: Poty Boat (2016), Além-Mar (2016), Navemar XII (2017), Jaqueline 2 (2018), Ekos Noronha (2019), Navegantes (2022) e Thais IV (2022).
Em 21 de junho de 2022, o navio de transporte de cargas Thais IV, da empresa Jaqueline, saiu do Porto do Recife carregando materiais diversos em direção ao arquipélago. No dia seguinte, naufragou no litoral norte da Paraíba. Dos oito ocupantes, quatro foram encontrados com vida, dois morreram e tiveram os corpos resgatados do mar, e outros dois permanecem desaparecidos.
Em novembro de 2022, em Fernando de Noronha, a embarcação Topa-Tudo teve um incêndio a bordo causado pelas más condições de manutenção em que se encontrava a praça de máquinas. O salvamento da tripulação foi realizado por turistas que passeavam em veleiros, próximos dali.
“A mídia não se interessou muito em divulgar os sinistros. O comportamento provavelmente seria outro se, em vez de marinheiros mercantes, as vítimas fossem turistas.”
Rinaldo Medeiros
Delegado do Sindmar na região Nordeste
“Se voltarmos mais no tempo, encontraremos registros de um número ainda maior de acidentes. Como se trata de embarcações de carga, a mídia não se interessou muito em divulgar os sinistros. O comportamento provavelmente seria outro se, em vez de marinheiros mercantes, as vítimas fossem turistas. Estou certo de que a repercussão teria sido muito maior e provavelmente não haveria essa absurda repetição de acidentes, que configura uma verdadeira travessia da morte”, argumenta Rinaldo Medeiros, delegado do Sindmar na região Nordeste.
Ao tomar conhecimento desses fatos, o Sindicato abriu um canal de comunicação com marítimos que atuam na travessia e, desde então, passou a receber relatos assustadores sobre as péssimas condições das embarcações operadas por algumas empresas.
Ao buscar compreender as causas de tantos incidentes, chegou-se à que parecia a mais provável: excesso de carga. Diversos tripulantes e ex-tripulantes que trabalharam em diferentes empresas na rota Recife-Noronha denunciaram ao Sindmar que, após serem realizadas as inspeções regulamentares da Capitania dos Portos, à noite os barcos recebiam cargas adicionais e até passageiros clandestinos.
“É como se fosse uma carga. O trabalhador vai escondido na embarcação só para ajudar no descarrego lá (Fernando de Noronha), porque ele trabalha para a empresa, que não quer custear mão de obra de lá porque é mais cara. Uma diária aqui é 50 reais, que ela paga para o cara virar a noite. Lá em Noronha, no mínimo, vai ser 200. A situação de trabalho dessas pessoas tem que ser fiscalizada”, denunciou um tripulante.
“De Recife pra Noronha até que é uma navegação tranquila e poucas vezes a gente pega um mar violento, mesmo no inverno. O que está afundando essas embarcações é a forma como essas empresas trabalham. Eles só pensam em levar mais carga, nada de segurança”, disse outro marítimo que trabalha na rota.
Segundo o Sindicato apurou, a maior parte das embarcações que naufragaram estava com sobrepeso. Houve uma que – contam as testemunhas – estava tão carregada que saiu do Recife adernando e, mesmo com mar tranquilo, em razão da inclinação, acabou afundando próximo a Olinda.
Esse foi o primeiro de dois naufrágios de que foi vítima um dos marítimos que contataram o Sindmar. “No primeiro naufrágio tive que nadar 19 quilômetros, agarrado em um pallet, à noite, chovendo, com ondas de três metros, até chegar à beira-mar de Olinda. E no segundo eu fiquei 14 horas dentro da balsa, sem comida, até a corveta vir nos resgatar. O sonho da minha esposa é eu sair dessa rota”, relatou.
Um levantamento realizado pelo Sindmar revelou que as empresas que operam na travessia entre o continente e Noronha, em sua maioria, também praticam péssimas condições laborais, o que foi denunciado ao Ministério Público do Trabalho (MPT). A travessia de mar aberto nessas condições é extremamente preocupante e denota negligência, omissão e descaso dos armadores com a vida humana.
De posse de evidências concretas, o Sindmar formalizou denúncias competentes à Capitania dos Portos de Pernambuco (CPPE), à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), à inspeção do trabalho do MTE, à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), à OAB e a autoridades locais, informando sobre os problemas de excesso de carga, falta de manutenção e péssimas condições laborais nas embarcações.
A Capitania dos Portos de Pernambuco comunicou ao Sindicato que está realizando uma investigação rigorosa dos naufrágios e práticas irregulares das empresas.
Já a Antaq informou ter instaurado processos de fiscalização de dez empresas de navegação que operam no transporte de cargas de cabotagem entre Recife e Fernando de Noronha, a fim de apurar os fatos denunciados pelo Sindmar.
Segundo o MPT, uma procuradora foi destacada para cuidar do caso e está analisando as informações.
A fiscalização do trabalho (MTE) informou que irá questionar as empresas, uma vez que nenhuma delas registrou Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) para as vítimas dos naufrágios.
A Anvisa confirmou o recebimento da denúncia e do pedido para que sejam fiscalizadas as condições de higiene das embarcações, que podem representar risco para a saúde dos tripulantes.
A OAB registrou as informações passadas pelo Sindmar na Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo, em âmbito estadual e também federal.
“Os acidentes não ocorrem ao acaso, por isso não pode haver espaço em águas brasileiras para navegação abaixo dos padrões. Sempre que há permissividade com práticas condenáveis, como as denunciadas por companheiros que atuam na travessia para Fernando de Noronha, o resultado não demora a aparecer. O que vemos é a repetição de acidentes que poderiam ser evitados e, em algum momento, com perda de vidas, o que jamais deveria ocorrer. A ganância de armadores que buscam aumentar seus lucros ao custo das vidas dos marítimos que empregam tem que ser contida. A organização sindical marítima seguirá implacável contra esse comportamento vergonhoso e desumano”, declarou Carlos Müller, presidente da Conttmaf.