Depois de três propostas rejeitadas pelos marítimos a bordo dos navios, e pressionada pela disposição crescente para mobilização coletiva, a estatal finalmente se dispôs a negociar e atendeu às reivindicações.
A negociação do acordo coletivo de trabalho (ACT) do pessoal de mar da Transpetro não começou nada bem. Em novembro passado, seguindo as orientações do governo anterior para todas as estatais, a empresa apresentou uma proposta que ignorava as reivindicações consolidadas pelas entidades sindicais marítimas que negociam em conjunto, coordenadas pela FNTTAA e pela Conttmaf. Entre outros pontos, os sindicatos buscavam corrigir a defasagem significativa nas remunerações, que se acumulou ao longo dos últimos anos, em relação aos valores praticados pelas demais empresas do setor.
Naquele momento, a Transpetro continuava a lançar mão do já desgastado discurso de que oferecia benefícios diferenciados em comparação com os do mercado. Isso pode ter sido verdade em tempos passados, mas não condiz com a realidade atual, devido aos avanços alcançados pelos marítimos nas empresas privadas. O “diferencial”, na verdade, era outro. Enquanto a Petrobras e a Transpetro lideravam o ranking de salários dos diretores de estatais, ocupavam a lanterna quando o assunto era a remuneração de marítimos.
“Enquanto a Petrobras e a Transpetro lideravam o ranking de salários dos diretores de estatais, ocupavam a lanterna quando o assunto era a remuneração de marítimos.”
A proposta foi submetida à consulta dos tripulantes dos navios, tendo sido rejeitada por 96% daqueles que participaram da votação. A partir disso, houve o entendimento de que poderia haver mobilização coletiva para uma greve, caso a empresa não acolhesse a pauta com os pleitos principais da categoria.
Em 23 de dezembro, num episódio que retrata o habitual descaso da Transpetro para com os marítimos que emprega, a Conttmaf enviou à presidência da estatal uma notificação exigindo providências urgentes para cumprimento do acordo coletivo, devido ao fato de a empresa ter “presenteado” seus tripulantes com a proibição de embarque de cônjuges ou companheiros (as) no período de Natal e Ano Novo. Ao mesmo tempo, o acesso de funcionários de oficinas, inspetores, técnicos e até mesmo funcionários de terra aos navios continuava ocorrendo sem restrições.
Sob o argumento pouco convincente de “preocupação com a saúde dos marítimos”, a Transpetro pretendia proibir o acesso a bordo apenas a familiares, sendo que há protocolo específico definido pela Anvisa para tratar do embarque nos navios. O documento que visa efetivamente assegurar a condição de saúde dos marítimos contou com a contribuição da Conttmaf em sua última revisão, quando se buscou garantir a possibilidade de embarque de passageiros – situação em que se enquadram as famílias dos tripulantes.
Considerando esta uma grave atitude provocativa, unilateral e desrespeitosa, a Conttmaf advertiu que caso a Transpetro não suspendesse dentro de 24 horas as orientações emitidas e não cumprisse o que havia acordado no ACT – respeitando a autonomia do comandante do navio para autorizar o embarque de cônjuge ou companheiro (a) do marítimo ou da marítima que fizesse tal solicitação – as entidades sindicais consideravam-se desobrigadas de impedir o início do movimento grevista que a própria empresa, aparentemente, estimulava.
A Transpetro, então, rapidamente reavaliou sua posição e informou que iria cumprir o ACT, liberando a presença das famílias nas embarcações da empresa durante o período de fim de ano, quando o navio estivesse no porto. As entidades sindicais marítimas avaliaram que este lamentável episódio, na véspera de Natal, com decisões descabidas do corpo gerencial sendo modificadas pela alta administração da empresa, apenas reforçava a percepção de que a maior empresa de navegação do Brasil não contava com uma gestão apropriada, dando sinais de que padecia de uma descoordenação administrativa generalizada, que necessitava ser resolvida.
Os dias de quarentena
O pagamento dos dias passados em quarentena durante a pandemia de Covid-19, quando os marítimos permaneceram em hotéis, à disposição da empresa, nunca foi parte do ACT. Independentemente disso, a Transpetro se negava a remunerar integralmente e em dinheiro, como determina a CLT, os valores referentes a esses períodos, insistindo no ressarcimento de parte da dívida em contracheque e o restante por banco de folgas. As entidades marítimas já haviam deixado claro que essa compensação futura não funciona, uma vez que para manter marítimos desembarcados para folgas além do tempo previsto é necessário manter outros tantos a bordo pelo mesmo período.
No fim das contas, com o intuito de alcançar maiores lucros em 2022, a direção da Transpetro deixou de pagar os dias de quarentena dos marítimos. Isso levou os sindicatos a moverem ações judiciais em que solicitavam a correção desta situação que flagrantemente contrariava a legislação.A ação proposta pelo Sindmar e os sindicatos coirmãos reivindicava o pagamento integral dos dias à disposição do armador para quarentena, considerando a necessidade de remunerar apropriadamente os períodos em que os marítimos permaneceram isolados, às ordens da empresa, privados do convívio social e familiar. Em sua sentença, a juíza titular da 75ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, Cissa de Almeida Biasoli, determinou que a Transpetro efetuasse o pagamento dos dias de quarentena aos marítimos, deixando claro que a empresa estava agindo à margem da lei.
Contudo, a Transpetro não demonstrava qualquer intenção de realizar esse pagamento de forma imediata e, levando em consideração o longo tempo que poderiam demandar os eventuais recursos até uma decisão definitiva, as entidades sindicais marítimas decidiram solicitar mediação ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Na audiência conduzida em 19 de outubro pelo procurador Fábio Mobarak, os sindicatos apresentaram três pontos avaliados como fundamentais para a mediação:
• que a Transpetro reconhecesse que cada dia em quarentena à disposição da empresa resultava em um dia de folga para esses marítimos;
• que o pagamento fosse feito em dinheiro, com opção de folgas para aqueles que assim desejassem;
• que a empresa negociasse com os sindicatos o prazo para quitação dos valores e se dispusesse a apresentar os termos eventualmente acordados para homologação judicial.
A Transpetro rejeitou a mediação do Ministério Público e informou que pretendia discutir o assunto diretamente com as entidades sindicais. A proposta que ela apresentou, contudo, estabelecia a compensação dos dias devidos na forma de folgas, em um prazo de até dois anos, e foi rejeitada em consulta por 99% dos marítimos. Na ocasião, os sindicalistas evidenciaram o fato de que, somando-se o período da pandemia, quando ocorreu o fato, e o prazo que a empresa propunha para pagamento, a espera para os trabalhadores receberem o previsto na legislação poderia chegar a cinco anos. “Os marítimos cumpriram a sua parte na relação de trabalho e asseguraram a continuidade da atividade de transporte marítimo durante a pandemia. Exigimos que a Transpetro cumpra a sua parte agora, fazendo o pagamento dos dias devidos de forma pecuniária”, declarou à época Carlos Müller, presidente do Sindmar e da Conttmaf.
Mediação no Tribunal Superior do Trabalho (TST)
“Os oficiais encontravam condições econômicas superiores nas empresas da cabotagem que assinam acordos mais vantajosos. E ainda oferecendo emprego em navios que, muitas vezes, nem transportam carga perigosa, com um tempo menor de permanência a bordo e uma relação de trabalho mais respeitosa com os marítimos.”
José Válido
Segundo-presidente do Sindmar
Logo no início do processo negocial, a subsidiária de logística e transporte da Petrobras buscou a mediação pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). Na audiência, a Conttmaf declarou que a busca por mediação naquele momento configurava má-fé processual por parte da empresa, uma vez que as negociações ainda se encontravam em estágio muito inicial e a Transpetro sequer havia demonstrado algum esforço no sentido de contemplar as justas reivindicações dos marítimos.
Pouco tempo depois, o TST postergou as reuniões de mediação, o que levou a Transpetro de volta à mesa de negociação com os sindicatos. A essa altura, os marítimos vinculados à empresa já haviam aprovado a possibilidade de greve caso se chegasse ao fim da negociação sem avanço nas remunerações, ou se a empresa prosseguisse com sua intenção de vender ou transferir navios para armadores de outras bandeiras.
O segundo-presidente do Sindmar, José Válido, ressaltou naquele momento que a Transpetro tinha as piores condições e os mais baixos salários para os marítimos no Brasil, o que a levou à maior taxa de evasão profissional da sua história, colocando em risco o prosseguimento de suas atividades. “Os oficiais encontravam condições econômicas superiores nas empresas da cabotagem que assinam acordos mais vantajosos. E ainda oferecendo emprego em navios que, muitas vezes, nem transportam carga perigosa, com um tempo menor de permanência a bordo e uma relação de trabalho mais respeitosa com os marítimos”, afirmou Válido.
Carlos Müller apontou para deficiências graves na administração da Transpetro, como a participação de neófitos em gestão de empresas de navegação, acarretando decisões equivocadas e fora da realidade do setor marítimo. “Há quem se deslumbre com a imponência dos navios, mas que sequer consiga compreender que a existência de Marinha Mercante nacional em um país é uma decisão política, antes de ser econômica. Sem conhecer os meandros da atividade de transporte marítimo, não duvido que acabem procurando ‘a chave da escada de portaló’ nas raras visitas que fazem a bordo. É urgente que haja mudanças nessa gestão para o fracasso da bandeira brasileira que se instaurou na Transpetro”, ponderou o dirigente sindical.
As propostas seguintes
A Transpetro continuava a seguir a cartilha do governo anterior para inviabilizar um ACT justo, e a segunda proposta apresentada pela empresa teve 99% de rejeição em consulta aos marítimos realizada no início de janeiro. No aspecto econômico, foi oferecida apenas a reposição do IPCA (6,47%), o que, na conta final, mesmo contemplando integralmente o índice de inflação, não diminuía significativamente a defasagem nos salários, que continuariam em um patamar muito inferior ao praticado no mercado.
A terceira proposta continuou sem avanços para a maior parte dos marítimos, oferecendo um acordo que não contemplava a maioria das reivindicações elencadas pelas entidades sindicais e aprovadas nas assembleias. Os sindicatos afirmavam que a companhia, claramente, estava usando a questão do pagamento dos dias de quarentena para mascarar um conjunto de cláusulas que não atendia minimamente aos anseios dos trabalhadores e que, sem surpresa, foi rejeitado por 96,3% dos marítimos votantes.
No topo da lista de reivindicações não contempladas estavam o avanço salarial em nível compatível com o praticado nas demais empresas de navegação do Brasil, a implantação de um plano de carreira, cargos e salários (PCS) justo para todo o corpo funcional marítimo – o único do Sistema Petrobras a não contar com um – e o pagamento de dobras pelos dias excedentes, sem carência de dez dias para o desembarque.
Destacavam-se, ainda, outras demandas como o reajuste no vale-alimentação/refeição; o estabelecimento de uma discussão efetiva sobre condições específicas para o GIAONT, cozinheiros e enfermagem; a continuidade dos navios construídos pelo Promef, com emprego de comandante, chefe de máquinas e pelo menos 2/3 de tripulantes brasileiros e a incorporação do valor atualmente desembolsado pela empresa a título de PPP à PLR negociada com os sindicatos marítimos.
“A proposta que foi apresentada é desrespeitosa para com o pessoal da guarnição e, para a maior parte dos oficiais e eletricistas, não alcança um reajuste que permita colocar a Transpetro no mesmo patamar das outras empresas. Está muito abaixo do esperado. Então, no nosso entendimento, o caminho possível é continuar a luta coletiva e, caso não haja disposição da empresa em trazer melhorias, a greve, que já foi aprovada pela categoria para essa situação extrema”, disse Carlos Müller na ocasião.
O caminho para o consenso
Em 2 de fevereiro, a empresa foi informada da ampla rejeição à sua terceira proposta de acordo coletivo de trabalho. Desde então, os sindicatos vinham alertando sobre a possibilidade de uma mobilização efetiva a bordo dos navios, durante o Carnaval, caso a Transpetro permanecesse sem dar uma resposta de fato às reivindicações dos marítimos.
Depois de três rejeições em sequência e às vésperas do feriado de Carnaval, a Transpetro decidiu repensar o posicionamento que vinha adotando. O diretor de Transporte Marítimo, Dutos e Terminais, William França, se dispôs a estabelecer uma discussão mais objetiva com a Conttmaf e se comprometeu a buscar junto à presidência da empresa condições que viabilizassem um ACT que os sindicatos marítimos pudessem identificar como justo e que levasse as entidades sindicais a orientar seus representados pela aprovação.
A partir daí a negociação fluiu rapidamente na direção de uma proposta que atendeu à maior parte da pauta consolidada pelos sindicatos, como o reajuste salarial contemplando o índice de inflação mais um ganho real, que foi alcançado com a implantação de um plano de cargos e salários para todo o corpo funcional marítimo – reivindicação dos trabalhadores desde a fundação da empresa, em 1998.
Em 16 de fevereiro, foi realizada uma reunião emergencial entre representantes das entidades sindicais marítimas e a diretoria da Transpetro para resolver problemas nas cláusulas do acordo, ainda antes do feriado prolongado, já que a eventual ausência de avanços poderia ensejar o início de uma mobilização mais efetiva a bordo dos navios. A reunião teve dois turnos, começando na parte da manhã e continuando à tarde, e a empresa finalmente se mostrou disposta a discutir avanços até chegar a uma proposta compatível com os pontos reivindicados.
Desta forma, ficou garantido um aumento salarial para todos, que reduziu significativamente a defasagem para a maior parte das categorias da gente do mar. Os casos específicos dos eletricistas e dos oficiais nas funções iniciais da carreira tiveram um ajuste complementar por meio das gratificações, possibilitando que todas as funções a bordo chegassem a um patamar que podemos chamar de justo, mais próximo das condições de mercado. Para esses, havia uma defasagem salarial bem maior em relação aos demais oficiais e à guarnição, fato que se refletia numa elevada taxa de evasão dessas categorias.
A proposta final da Transpetro, trazendo avanços expressivos e históricos, foi submetida a amplo e democrático processo de consulta, do qual puderam participar todos os marítimos vinculados à empresa, independentemente de estarem embarcados ou desembarcados, em gozo de férias ou folgas, bem como aqueles que atuam em prestação de serviço em terra (PST) e no Grupo de Inspeção Operacional de Navios e Terminais (GIAONT).
A consulta ocorreu entre os dias 19 e 24 de fevereiro e a proposta foi aprovada por 65,3% dos marítimos da empresa que participaram da votação. O engajamento dos trabalhadores embarcados foi decisivo neste processo. Considerando a frota total da Transpetro, as tripulações de 20 navios aprovaram a proposta, enquanto as de cinco rejeitaram e um navio teve igual número de votos em cada opção.
Embora não resolva todos os problemas na relação de trabalho, as entidades sindicais avaliam que o ACT aprovado possui um conjunto de cláusulas vantajoso para todo o corpo funcional marítimo, tomando como base os acordos que têm sido firmados com a empresa desde a sua fundação. “A Transpetro finalmente deu um passo significativo para se adequar ao que existe como prática consolidada no Brasil, pelos sindicatos da gente do mar, em mais de uma centena de acordos com as empresas do setor marítimo. Esperamos que a companhia cumpra o que acordou conosco e siga disposta a discutir avanços na próxima data-base”, registrou Odilon Braga, diretor-secretário do Sindmar e da Conttmaf.
Destaque para a atuação do TST
“Temos de reconhecer e prestigiar o esforço do vice-presidente da corte superior trabalhista em estimular a negociação entre as partes, evitando a pressão absurda e as intimidações contra os empregados que caracterizaram as negociações com as estatais nos anos anteriores.”
Carlos Müller
Presidente do Sindmar e da Conttmaf
O Sindmar considera importante destacar a atuação do ministro vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Aloysio Corrêa da Veiga, relator do procedimento de conciliação e mediação instaurado. Ao longo do processo, o magistrado buscou conciliar os interesses das partes de forma equilibrada, permitindo que os marítimos negociassem as suas justas reivindicações com a empresa e, ao mesmo tempo, observando os circunstanciais limites impostos pela esfera governamental à Transpetro devido à sua condição de estatal. “Temos de reconhecer e prestigiar o esforço do vice-presidente da corte superior trabalhista em estimular a negociação entre as partes, evitando a pressão absurda e as intimidações contra os empregados que caracterizaram as negociações com as estatais nos anos anteriores”, ressalta Carlos Müller.
As entidades sindicais marítimas e a Transpetro foram convocadas pelo ministro Aloysio Corrêa da Veiga a assinar o ACT em Brasília, em uma cerimônia no Tribunal Superior do Trabalho – TST, no dia 7 de março de 2023.