Encontro histórico reuniu dirigentes de três gerações do sindicalismo marítimo brasileiro. Juntos, eles traçam um panorama do momento que o país atravessa, apontando os desafios para o futuro da Marinha Mercante nacional.
“Meninos, eu vi!”
A célebre frase do poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, foi a primeira proferida pelo Oficial de Náutica aposentado Romulo Augustus Pereira, 88 anos, na entrevista que gerou esta reportagem. Tendo ingressado na Escola de Marinha Mercante na década de 1950, ele abraçou a atividade sindical em um período conturbado para a democracia no Brasil, quando se tornou presidente do antigo Sindicato Nacional dos Oficiais de Náutica da Marinha Mercante – Sindnáutica, anterior ao SINDMAR.
É autor do livro “Memórias de um Pelego”, no qual resgatou as origens do sindicalismo marítimo brasileiro. Na obra, ele mostra a capacidade de luta dos homens do mar, que, ao longo de quase um século de associativismo, venceram obstáculos e avançaram na melhoria dos seus salários e das suas condições de trabalho. Feitos notáveis, porém frequentemente ignorados por aqueles que questionam tanto a existência quanto a atuação dos Sindicatos.
Em sua casa, na região serrana do Rio de Janeiro, Romulo Augustus se juntou a quatro dos nossos dirigentes em atividade para, juntos, transformarem em lições a experiência adquirida. O grupo analisa o momento atual e propõe as soluções para os problemas que o futuro reserva aos trabalhadores marítimos nacionais.
Para esses sindicalistas, a certeza do dever cumprido não dispensa o compromisso com as novas gerações. Como na passagem da cana do leme, quando um timoneiro transfere o governo da embarcação para outro, o sindicalismo marítimo terá orgulho em entregar aos que virão um caminho de conquistas construído à custa de muita luta. Aos que assumirem, caberá construir, para si, para seus companheiros e para suas famílias, um futuro próspero e digno, e manter nossa Marinha Mercante forte e soberana.
“O movimento sindical é como as mãos, os olhos, um sentido qualquer, que, quando a gente tem, não dá valor. Agora, experimenta fechar o olho, perder o ouvido, para você ver a falta que faz! Se vocês não tivessem Sindicato, hoje estariam trabalhando em péssimas condições e sendo muito mal remunerados.”
UNIFICAR: Num momento em que a remuneração e as condições de trabalho dos marítimos brasileiros estão entre as melhores do mundo, o que um dirigente sindical da sua geração teria a passar como ensinamento para aqueles que iniciam uma carreira no mar?
Romulo: Vou dizer uma coisa: meninos, eu vi! Essa Marinha Mercante que está aí não caiu do céu, não caiu no colo de vocês por graça do Divino Espírito Santo. Isso foi muito dirigente sindical que foi em cana. Foi muito dirigente sindical que levou porrada. Foi muito dirigente sindical que não teve Natal, não teve Ano Novo, não teve coisa nenhuma em casa. Há quem xingue sindicalista de safado, picareta, pelego, ladrão… e por aí vai… Mas o fato é que a barca continua navegando e o SINDMAR está aí, hoje, belo e formoso. O movimento sindical é como as mãos, os olhos, um sentido qualquer, que, quando a gente tem, não dá valor. Agora, experimenta fechar o olho, perder o ouvido, para você ver a falta que faz! Se vocês não tivessem Sindicato, hoje estariam trabalhando em péssimas condições e sendo muito mal remunerados.
UNIFICAR: Desde quando deixou o movimento sindical, há três décadas, quais foram as mudanças mais perceptíveis no cenário marítimo brasileiro?
Romulo: Mudou muito, é outro mundo, outro panorama. Hoje, vocês estão trabalhando em bandeira que não é a nossa e nós não temos mais Marinha Mercante de longo curso. Mas uma coisa é constante: o nosso Sindicato, que está aí há quase cem anos. Se vocês têm o que têm hoje e acham pouco, adivinha como era quando a gente trabalhava um ano inteiro para ganhar 20 dias de férias? E quando tinha! Também era comum armador atrasar pagamento de soldada por dois, três, até quatro meses. Isso quando não falia e deixava você no ora-veja.
UNIFICAR: Aqueles que abraçam a vida a bordo nem sempre têm disponibilidade para atuar na atividade sindical. É possível, ainda assim, contribuírem com a defesa dos interesses coletivos?
Romulo: Nem todo mundo nasceu para fazer sindicalismo, mas todo mundo pertence a uma categoria. Não atrapalhando, você já ajuda muito. Vote como quer que seja, nas assembleias ou virtualmente, mas, uma vez que o Sindicato tome uma posição, vá junto! Não reme contra, não faça remo torto. Se não quiser ser participativo, apenas pague a sua mensalidade, porque estrutura nós temos. Sempre tivemos, modéstia à parte, o melhor corpo de dirigentes sindicais do país. É como um plano de saúde, a que você se associa para garantir tratamento médico, hospitalar etc. Você contribui com o Sindicato para ter garantidas, potencialmente, melhores condições de trabalho, de emprego ou de não-desemprego. Vai ter quem lhe proteja contra uma barra pesadíssima, que é a pressão da armação. Eles, sim, sabem se coligar. Eu teria defendido isso, da mesma forma, cinco ou seis décadas atrás, porque há certas coisas que não mudam. Se você gosta do seu emprego, do seu trabalho, das suas férias, pague o seu Sindicato e não fale contra. Se falar, fale em assembleia, não pelos corredores. Atuando contra a ação sindical, você estará condenando você mesmo e sua família, correndo maior risco de, amanhã, ficar na pedra, chorando de canto.
“Não é por compreensão ou por bondade que nos pagam salários compatíveis com o nosso desempenho profissional, que nos oferecem um dos melhores regimes de trabalho e repouso, nessa atividade, de todo o mundo. Isso é uma conquista. E, como qualquer conquista, para ser mantida, ela precisa ser protegida.”
UNIFICAR: Embora sejam tantas as evidentes conquistas do movimento sindical ao longo dos anos, ainda existe resistência ou indiferença a ele por parte de certos marítimos. A que acha que isso se deve?
Severino: Isso não se deve a apenas um ou a poucos fatores, são muitos. O crescente analfabetismo político na sociedade da qual somos parte, a falta de inclusão, na formação escolar, da história de nossa organização política e social, a influência cada vez maior das chamadas “redes bestiais” – que estão repletas de informações rasteiras desprovidas de senso crítico, focos idiotas e fake news – são alguns exemplos. Esse comportamento ocorre notadamente entre o nosso pessoal mais jovem, formado há menos tempo, que não percebe que isso que estão usufruindo hoje é fruto da força que nós obtivemos ao longo de décadas na organização sindical. Não é doação da armação. Não é por compreensão ou por bondade que nos pagam salários compatíveis com o nosso desempenho profissional, que nos oferecem um dos melhores regimes de trabalho e repouso, nessa atividade, de todo o mundo. Isso é uma conquista. E, como qualquer conquista, para ser mantida, ela precisa ser protegida. A não compreensão da importância da ação sindical nos levará, efetivamente, a perdas, e quem sofrerá mais com isso não são os mais antigos – até porque, com o correr dos anos, esses não estarão mais na atividade. São os rapazes e moças ‒ hoje com os seus 20 e poucos anos, com os seus 30 e poucos anos, um pouco mais velhos, talvez ‒ que vão amargar as dificuldades. Isso, seguramente, tem tirado o nosso sono. Vou insistir naquela figura de imagem que eu gosto de usar: o movimento sindical é como um corpo, com cérebro, membros, que se move e que tem o dever de se mostrar vivo e de se proteger. Quem fornece músculos para esse corpo são os nossos representados. Associados ou não, é esse grupamento de homens e mulheres que efetivamente dá força ao movimento sindical, para resistir à invasão do nosso mercado profissional, resistir à precarização das condições de trabalho e das relações laborais. Então, muito me preocupa que, infelizmente, tenhamos fragilidades nesse ponto, que ocorrem pela falta de percepção do nosso pessoal.
UNIFICAR: Por que a nova geração de marítimos não vem demonstrando a mesma disposição de seus antecessores para as causas coletivas?
Severino: Além dos motivos que já expusemos, isso se deve também ao fato de vivermos em uma sociedade que se mostra cada vez mais individualista. Há uma questão que, mais e mais, tende a ser central: a maneira como estão sendo formados os nossos rapazes e as nossas moças para se tornarem futuros Oficiais mercantes. Não vou entrar no âmbito técnico porque o que eu quero destacar é outra coisa: é o aspecto de conquista do que nós precisamos, e de proteção do que nós já conquistamos. Infelizmente, rapazes e moças têm saído das nossas escolas totalmente despreparados para a realidade que vão enfrentar. A relação que eles têm com isso é preocupante para nós. A Marinha do Brasil precisa compreender que ela presta um grande serviço formando os nossos Oficiais, mas ela não pode simplesmente formar bem tecnicamente. É preciso entregar ao mercado um Oficial em condições de se defender, e isso também é responsabilidade da Marinha do Brasil. Por mais desagradável que seja, sermos nós a alertar para este tipo de responsabilidade, nós nos obrigamos a fazê-lo. Não podemos estar felizes ao colocar no mercado marítimos deslumbrados porque vão gozar de regime 1×1 e receber salários maiores do que receberiam em terra. Deslumbrados, mesmo com os percalços desses últimos anos, com dificuldade de praticagem e até mesmo para a obtenção de empregos, que são problemas que sempre existiram. O problema maior é quando não há salários. O problema maior é quando direitos são eliminados. Esse é um aspecto que muito nos preocupa.
UNIFICAR: Sob o pretexto de aumentar as vagas de emprego, a reforma na legislação trabalhista tornou precárias as relações de trabalho no Brasil. De que modo essa nova realidade pode impactar os marítimos?
Severino: Enquanto categoria, estamos longe de ter o nosso pessoal compreendendo bem as consequências dessa chamada reforma trabalhista. A maioria não sabe, ainda, o que representa a perda da ultratividade. Aliás, muitos dos nossos sequer sabem o que é ultratividade, e olha que nós estamos falando constantemente sobre isso nos nossos canais de comunicação e nas visitas a bordo realizadas pelos dirigentes sindicais. Estamos tentando fazer com que todos compreendam os riscos que emergem dessa busca desenfreada por terceirização. Se os nossos companheiros não entenderem isso, os únicos que não virão a sofrer com essa situação são justamente os dirigentes sindicais – veja que situação absurda! Isso porque, em termos de direitos e deveres relativos ao dirigente sindical, nada foi alterado sob o ponto de vista legal. Então, ele está seguro. Mas aquilo que ele representa hoje, está efetivamente sob risco de perder tudo e mais alguma coisa. E um dirigente sindical que tem compromisso com quem e com o quê ele representa, evidentemente, se sente muito mal com isso. Porque não é só o desemprego que machuca emocionalmente o bom dirigente sindical, mas também as condições em que estão seus companheiros, que ele tem orgulho de representar. Se um companheiro está sendo explorado, se está em um regime de trabalho abusivo, isso mexe profundamente com o dirigente sindical.
“Diz-se que, quando encurralados, até os ratos lutam, então, é preferível que o pessoal do mar se decida a lutar unido antes de ser reduzido à condição de ratos. Comecem a ser unidos desde já. Filtrem as maledicências, façam análise crítica e juntem-se, porque não é um mero ditado isso de que a união faz a força.”
UNIFICAR: Como um dos líderes da greve histórica dos marítimos de 1987, que livrou a categoria de uma situação de salários aviltantes e condições de trabalho precárias, que conselhos daria aos que chegam agora a esse mercado?
Areias: É preciso ser racional e refletir sobre o fato de que nada cai do céu. O empregador está no papel dele, que é obter o máximo de lucro com o mínimo de custo. Nada vem de graça. Nenhum país, nenhuma sociedade adquire mais direitos por concessão dos dominantes, mas por sua capacidade de se organizar e de se unir. Diz-se que, quando encurralados, até os ratos lutam, então, é preferível que o pessoal do mar se decida a lutar unido antes de ser reduzido à condição de ratos. Comecem a ser unidos desde já. Filtrem as maledicências, façam análise crítica e juntem-se, porque não é um mero ditado isso de que a união faz a força. E essa união se expressa pelo vocábulo “sindicato”, que vem do grego “com justiça”. Sindicato é um órgão de feitura de justiça social. Por isso, quase sempre, outro não é o interesse das classes dominantes que impedir a organização social, da qual o Sindicato é o mais importante vetor, com o intuito de dominar e subjugar a classe trabalhadora. Sem união, de pouco vale a proficiência. Muito menos, a pseudossabedoria.
UNIFICAR: Por que os marítimos precisam confiar no trabalho dos seus dirigentes sindicais?
Areias: As pessoas deveriam calçar as sandálias da humildade. Não dá para alguém, ao mesmo tempo, ser um excelente profissional, em atividade no mar, e estar a par de todos os meandros da atividade sindical. Então, qualquer dúvida que haja, é mais prudente que as pessoas busquem esclarecimento com a sua entidade de classe. Não se deve acreditar, incondicionalmente, nos opositores, nos inimigos naturais da atividade de classe, dos que lutam pelos direitos dos trabalhadores fora do Sindicato. Não queira saber o que é o Sindicato pela boca do armador, pela boca do empregador, porque eles estão conscientes do seu papel. Eles têm assessorias altamente qualificadas e obviamente isso não se dá de graça. Então, de tal forma, um Sindicato também exerce atividade técnica, atividade política, atividade que envolve compreensão de acordos e de leis trabalhistas, algo normalmente impossível de ser feito por companheiros que estejam a bordo. Esses devem participar dos Sindicatos e ter o mínimo de confiança nos seus dirigentes ou, até mesmo, se habilitar a ser um desses dirigentes.
Unificar: Como se poderia traçar um paralelo entre o sindicalismo marítimo da sua época de dirigente e o dos tempos atuais?
Areias: Não obstante as enormes conquistas obtidas pelo SINDMAR, nos últimos anos os armadores vêm adotando uma atitude extremamente beligerante contra a atuação sindical. A diferença para o período anterior a 1987 é que, embora a situação do pessoal a bordo, em termos de condições gerais de trabalho, estivesse ainda bem distante do que veio a se tornar com a atuação do SINDMAR, naquela época a armação não era hostil e as autoridades, o governo e a Justiça não visavam a desmantelar os Sindicatos. A história é cíclica: a crise em que estamos mergulhados deverá fazer o pessoal do mar enxergar a impossibilidade de se manterem as condições de trabalho e a própria preservação do emprego sem a ação coletiva. E isso é tarefa complicada, que deve ser levada a cabo por quem entende do riscado. O outro lado, o dos que querem aviltar o trabalho, é muito poderoso, competente e organizado. Para se contrapor a ele, é necessária a ação coletiva, unida e coordenada pelos entes de classe. Por isso, é fundamental a união dos profissionais em torno de seus órgãos de representação, prestigiando-os, até mesmo quando, eventualmente, merecerem críticas.
UNIFICAR: Atuando como consultor jurídico da CONTTMAF, como vê as ações da Justiça e dos armadores no tocante aos interesses dos trabalhadores marítimos?
Areias: As decisões judiciais, em geral, têm-nos sido razoáveis, mas algumas merecem registro, por demonstrar essa disposição de beligerância da armação. Dou como exemplo um processo envolvendo uma Oficial, vítima de grave acidente a bordo, cujos colegas, pressionados pela armadora ou por seus advogados, prestaram depoimentos deploráveis e tendenciosos*. Se não tivéssemos exercido uma defesa contundente, como ocorreu, certamente a vítima teria perdido a ação. Outro caso que podemos mencionar é o da defesa de um companheiro, de reputação ilibada e comprovado conhecimento técnico, que foi perseguido de forma vil pela empresa. Ela pretendia demiti-lo e, para isso, arregimentou colegas para que o pressionassem das formas mais abjetas. Obtivemos vitória no primeiro grau e no tribunal, mas a empresa insiste em recorrer aos tribunais superiores. Também não faltam exemplos, infelizmente, de marítimos que sabotam as lutas para melhoria das condições de trabalho e se prestam a depor em processos para prejudicar as ações sindicais. Já vimos isso acontecer no TST. Fato é que nenhum tribunal pode criar ou mesmo preservar direitos. Em 1987, o TST declarou a ilegalidade da greve e a categoria permaneceu unida atendendo ao jargão que aprendemos com os trabalhadores alemães: “Legal, ilegal, scheisse egal”‒ legal ou ilegal, é a mesma caca. A verdade é que ninguém respeita categoria frouxa, sem espírito de classe, muito menos os armadores e os tribunais.
*Nota da redação: a UNIFICAR publicou reportagem sobre o caso Yana Bell em sua edição nº 47, de junho de 2017. Acesse a versão digital no site www.sindmar.org.br
“Primordial, essencial, necessário é que haja união. E, além da união, a coragem de luta. Sem coragem, meu amigo, é fechar as portas e deixar que o pior aconteça.”
UNIFICAR: O que acredita que os marítimos de hoje poderiam aprender, de mais importante, com a sua geração?
Válido: Eu conheço de história de Sindicato a partir dos anos 90, quando comecei na militância. A Marinha Mercante vivia um período de grande decadência, com o desemprego batendo à nossa porta, com inúmeros companheiros fazendo uma única refeição no dia, ou tomando só aquele cafezinho com leite, tanto no extinto Sindicato de Máquinas, quanto no extinto Sindicato de Náutica, ou então indo na pensão da Dona Maria para comer o prato feito na hora do almoço, o que muitas vezes podia ser considerado um privilégio. Tive oportunidade de conviver, muito de perto, com esse companheiro nosso que conseguiu, na greve de 87, melhorar muito aquilo que se conhecia da imagem do Sindicado, que foi o Edson Martins Areias. Nos anos 90, o Severino assume o Sindicato de Náutica e também começa a ter esse protagonismo. Muito poucos, hoje, lembram desse período. Até porque, a partir do século em que estamos vivendo, começamos a atravessar novamente uma fase de bonança, e as pessoas se esqueceram muito rapidamente desse período difícil que tivemos na nossa história. Esquecem de creditar na conta dos Sindicatos que não foram os patrões que resolveram, na manhã de segunda-feira, começar a conceder benesses para os nossos companheiros. Saímos de uma época de regime de um mês de férias por ano… Isso, quando as pessoas conseguiam tirar férias! Muitos embarcavam por um ano e nove meses, e até ultrapassavam esse período. Hoje, já alcançamos um regime de 1×1, quer seja na cabotagem, quer seja na atividade offshore. Conseguimos conquistar inúmeros postos de trabalho no apoio marítimo, o que era vedado no passado, porque lá estavam os estrangeiros ocupando os nossos postos de trabalho. E cadê o crédito para o Sindicato? É fácil tacar pedra, mas nós temos o entendimento de que o devido mérito precisa ser dado àqueles que, por meio da atividade sindical, obtiveram conquistas de extrema importância para os nossos representados.
UNIFICAR: Acredita que há motivos, hoje, para os marítimos se mobilizarem, como aconteceu no passado?
Válido: Acho que essa mobilização é fundamental! Hoje, infelizmente, nós estamos vivendo, novamente, uma situação muito ruim e nossas expectativas não são boas. No offshore, perdemos postos de trabalho e, há cerca de uma década, a nossa cabotagem continua com um número estagnado, dificilmente se ultrapassa uma centena de navios. Mas nós continuamos vivos, precisamos continuar vivos, e quem está no Sindicato hoje vai fazer o possível para que permaneçamos vivos. Primordial, essencial, necessário é que haja união. E, além da união, a coragem de luta. Sem coragem, meu amigo, é fechar as portas e deixar que o pior aconteça. Esse é o recado que precisamos passar. Veja essa série de reformas: a reforma trabalhista, tão propalada e desejada pelos empregadores, a reforma da Previdência, a terceirização, que acabou de ter chancela do STF… E esse é outro ponto que nos convida à reflexão. Junto com essas reformas veio a quebra do custeio da atividade sindical, a eliminação do chamado imposto sindical. A quem interessa? Quem foi que conclamou por essas reformas? Foi a classe trabalhadora ou ela foi conduzida e muito bem guiada pela classe patronal? É obvio que foi a classe patronal, para poder quebrar as pernas do movimento sindical. E o pior é que ainda há um grande contingente de trabalhadores que acredita que isso é uma benesse! O governo massificou a propaganda na mídia, no trem, no metrô, nos ônibus, e isso foi pago por alguém, e não foi pela classe trabalhadora. Então, meus companheiros, temos de refletir e planejar de que maneira nós vamos nos engajar, para tentar recuperar pelo menos parte do que foi perdido e evitar um desastre maior para a nossa categoria.
“Como pretendemos sobreviver coletivamente? Essa é a pergunta que temos de nos fazer. Do jeito que as coisas caminham, mesmo você sendo um excelente profissional, corre o sério risco de simplesmente não ter mais onde trabalhar no Brasil.”
UNIFICAR: O que os leva a dizer que as condições conquistadas pelos trabalhadores marítimos nas últimas décadas estão ameaçadas?
Müller: Eu me coloco como parte da nova geração e sempre esteve claro para mim que nós não chegamos a esse patamar por generosidade dos patrões. O que temos hoje devemos aos líderes sindicais que trabalharam por nós com seriedade, com honestidade, colocando como prioridade os interesses daqueles que representavam ‒ muitas vezes, antes até dos seus próprios interesses. Vivemos, agora, um daqueles momentos de encruzilhada histórica para o nosso pessoal. Em pouquíssimos países é possível encontrar, para um conjunto tão grande de marítimos, o nível de salários e de condições de trabalho que temos no Brasil. Aqueles que chegaram até aqui, independentemente de excelência profissional, conseguiram usufruir desses benefícios. Porém, tivemos há pouco tempo o que se pode chamar de um desarranjo político, que possibilitou ‒ e ainda está possibilitando ‒ alterações profundas na legislação. Modificações que permitem praticar hoje, com carteira assinada, relações de trabalho que, não faz muito tempo, seriam consideradas exploração ou, até mesmo, um modelo de trabalho análogo ao de escravo. Mas hoje isso pode ser feito porque é o que está registrado na CLT. Como pretendemos sobreviver coletivamente? Essa é a pergunta que temos de nos fazer. Do jeito que as coisas caminham, mesmo você sendo um excelente profissional, corre o sério risco de simplesmente não ter mais onde trabalhar no Brasil.
UNIFICAR: Como assim?
Müller: O que a armação pretende, no offshore, é implantar um regime com um salário quase inexistente quando o marítimo estiver desembarcado, um salário baixo quando estiver embarcado e um período de permanência a bordo bem maior do que o de hoje. Isso tem o poder de fazer com que alguns companheiros e companheiras reflitam seriamente sobre as vantagens de continuar ou não trabalhando na profissão. E talvez seja exatamente isso o que deseja a armação. No momento em que os Oficiais perceberem que o que a armação pretende é lhes pagar salários equivalentes a menos da metade do que recebem hoje, muitos talvez cheguem à conclusão de que podem encontrar em terra uma situação mais confortável, mesmo ganhando menos. Se é para sofrer, para que sofrer embarcado? Melhor buscar em terra. Quando isso começar a acontecer, certamente, a armação vai procurar o governo, vai procurar a Marinha e vai alegar que o marítimo brasileiro não se interessa mais pelo trabalho embarcado, embora as condições oferecidas sejam as internacionais. Possivelmente, aproveitando-se da conjuntura formada, os armadores vão dar exemplos de nacionalidades dispostas a embarcar ganhando menos ainda do que eles oferecem. E ao mesmo tempo, vão apresentar ao governo e à Marinha o que seria a melhor solução para isso. E a gente sabe qual é: a abertura do mercado de trabalho para possibilitar que, aqui na cabotagem brasileira, atuem aqueles marítimos que têm vontade de trabalhar embarcados nas condições que são oferecidas.
UNIFICAR: E o que pode ser feito para evitar que isso aconteça?
Müller: Essa situação não será combatida individualmente. A única chance que nós temos de enfrentar o poder dos armadores é com um Sindicato forte. A mesma reforma trabalhista que possibilitou mudanças nas relações de trabalho também trouxe dificuldades adicionais para os Sindicatos e para os trabalhadores se organizarem. Então, hoje, mais do que nunca, é essencial que cada um procure o seu Sindicato, filie-se a ele e contribua financeiramente, porque não existe entidade forte e representativa sem recursos. Do outro lado, tentando impor essas condições, estão os maiores armadores do mundo, que atuam internacionalmente e dispõem de recursos muito significativos para defender seus interesses. Para fazer frente a isso, é necessário que tenhamos: organização, apoio mútuo e pensamento coletivo. Não haverá solução para o problema caso prevaleça a forma de pensar individualizada, tão comum hoje. Precisamos parar para refletir: se os próprios armadores buscam se organizar em associações é porque chegaram à conclusão de que, agindo juntos, eles têm mais força para impor aquilo que desejam. Por que o marítimo não faz o mesmo? Nós temos de fazer isso! É disso que depende, hoje, o nosso futuro e a continuidade da Marinha Mercante brasileira com marítimos nacionais.
UNIFICAR: Como é possível que ainda haja marítimos que acreditam no discurso da meritocracia, crendo que os armadores irão recompensar, individualmente, os seus esforços?
Severino: É para refletir mesmo! Será que o nosso pessoal consegue enxergar o cenário de Marinha Mercante ao redor do mundo? Eu receio que não. Porque, se tivesse essa condição ou esse interesse, saberia que aqueles profissionais, marinheiros tradicionais, cujas condições de trabalho eram objeto de desejo do marítimo brasileiro, não estão infestando os mares. Hoje, as grandes empresas estão em pequeno número, mas poderosíssimas, quase um oligopólio. Então, deveríamos estar com muitos alemães, com muitos noruegueses, com muitos americanos, com muitos ingleses, não é? E estamos? O mundo está? Não, não está. Nós temos, hoje, um crescimento brutal da mão de obra asiática no mundo. Até de nacionalidades das quais, até bem pouco tempo, não ouvíamos falar. Há dez anos, eu duvido muito que passasse pela cabeça de alguém a ideia de que, um dia, iríamos querer marinheiros de Vanuatu. E hoje, o que é que nós temos? Nós temos grandes investimentos dessas empresas que nos dão emprego aqui no Brasil, porque praticamente não tem mais empresa brasileira. Elas investem em escolas de formação em qualquer país – não precisa ser necessariamente da Ásia – que possa fornecer mão de obra barata. Chega a ser patético assistir à criação de novas associações patronais, de armadores, em nosso país, notadamente no Rio de Janeiro. Elas vêm se somar ao Syndarma, à Abeam e a essa nova associação, a Abran, patrocinada por armadores noruegueses, que até na internet divulgam as suas “preocupações” com o nosso mercado de trabalho. Chega a ser patético, porque, ao divulgarem essa suposta preocupação, das duas uma: ou são grandes mentirosos, ou acreditam piamente que nós somos de uma ignorância abissal. E eu digo isso porque os armadores noruegueses não têm dado emprego nem para norueguês no próprio país deles, vão se preocupar com emprego de brasileiros no Brasil?!
UNIFICAR: Há outros exemplos, além da Noruega?
Severino: O dos Estados Unidos, o grande irmão do Norte. No quintal da casa deles, o Golfo do México, as condições em que se trabalha são ridículas, se comparadas com as nossas. Poucos Acordos Coletivos de Trabalho, nível de sindicalização quase zero. Um desespero, uma referência péssima para o norte-americano, que só trabalha em águas jurisdicionais norte-americanas por força de lei, a Jones Act, porque senão já teria sido expulso de lá. É isso o que acontece no mundo e os nossos companheiros aqui se acham absolutamente livres de sofrerem da mesma coisa… Isso só não ocorreu no País graças à luta do movimento sindical marítimo brasileiro. Agora, querem ver tudo isso mudar? Contribuam então com o enfraquecimento desse movimento sindical marítimo e vocês vão pagar uma conta elevadíssima, é bem simples de se perceber. E aí, por tudo o que foi exposto aqui, a minha mensagem final, em termos de reflexão para todos é a seguinte: vocês têm que tomar uma decisão, isso é muito claro. Pensem! Vocês têm que decidir se querem ser parte do problema ou parte da solução do problema. Se vocês querem se somar ao problema, fazer o quê? Porque o Sindicato pode fazer tudo, menos fazer milagre. É difícil de implementar um departamento de milagres no SINDMAR. É preciso que vocês sejam parte da solução dos problemas que se apresentam e venham somar forças. Assim, nós temos esperança de salvar as nossas conquistas já realizadas e mantê-las pelo nosso futuro.