Sem transparência em sua elaboração, nova legislação da cabotagem pode priorizar lucro de armadores sem assegurar postos de trabalho para marítimos brasileiros
Desde 2019, o governo federal vem divulgando sua intenção de lançar uma política de estímulo à cabotagem, possivelmente na forma de Medida Provisória ou Projeto de Lei. O objetivo declarado é expandir a participação do modal aquaviário no transporte de cargas e reorganizar a matriz logística nacional, a fim de estimular a concorrência, aumentar a eficiência e reduzir os custos no setor.
À primeira vista, a iniciativa parece promissora, seguindo-se a lógica de que o aumento de atividade no setor levaria automaticamente à geração de empregos para brasileiros. Ocorre, no entanto, que a falta de transparência na elaboração da legislação que deverá viabilizar o pacote de medidas tem criado um cenário de dúvidas.
As poucas informações divulgadas até o momento indicam que o atraso no lançamento do programa se deve a desentendimentos entre os ministérios da Economia e da Infraestrutura. Enquanto o primeiro mantém uma visão extremamente liberal da atividade econômica, o segundo, aparentemente, defende que os navios do setor arvorem bandeira brasileira para que o país mantenha sua soberania e relevância no contexto mundial.
É sabido que grandes empresas de navegação que operam globalmente vêm atuando nos bastidores, buscando a abertura do mercado na cabotagem brasileira. Portanto, todo cuidado é pouco. Não há como mensurar a influência que os armadores internacionais terão na elaboração das medidas que vão reger nossa cabotagem.
Diante disso, fica a dúvida: será que aquele que deveria se configurar como um programa de incentivo ao emprego de brasileiros em águas nacionais, no fim das contas, será entregue como um presente de grego aos nossos marítimos?
O Brasil é um país de território continental, cuja população, a sexta do planeta, já supera os 211 milhões de habitantes. A atividade econômica se desenvolve predominantemente ao longo de nossa extensa faixa costeira e dos rios navegáveis. Nessas regiões estão 70% da população, grandes cidades, parques industriais e unidades de produção e refino de petróleo.
Nosso povo gosta de dizer que Deus é brasileiro e, se isso for verdade, uma evidência poderia ser o fato de termos sido contemplados pela natureza com milhares de quilômetros de estradas sem pedágios, sem engarrafamentos e sem limites de velocidade ou de peso. Para um país com as características do nosso, a navegação de cabotagem é, claramente, a modalidade de transporte mais viável para um desenvolvimento sustentável, com taxas de sinistralidade, impacto ambiental e custo de implantação bem menores que no transporte rodoviário. Além disso, ela permite maior eficiência, com amplas possibilidades de integração com outros modais.
Ainda que tantos ventos soprem a favor, hoje o transporte aquaviário no Brasil responde por apenas 16% da movimentação interna de cargas, sendo 11% por meio da navegação marítima costeira e 5% nas hidrovias. O modal rodoviário segue na dianteira, detendo mais de 60% das cargas transportadas, fato que gera – ou, pelo menos, deveria gerar – preocupação para os brasileiros.
Entendendo o desenvolvimento do transporte no Brasil
A 2ª Guerra Mundial levou o país a concentrar esforços em três objetivos: adentrar o mundo da industrialização, produzir energia para esse propósito e garantir o transporte de mercadorias, tanto as produzidas aqui quanto as que fosse preciso importar. Na década de 1950, o automóvel recebeu o cetro do reinado dos meios de transportes, em detrimento daqueles que, até então, haviam ocupado lugar de destaque na logística das nações mais desenvolvidas: o trem e o barco.
A fascinação que os humanos sempre tiveram por seu próprio deslocamento foi suficiente para que nossa sociedade se convencesse de que o automóvel era o que de melhor havia para nos locomovermos e que ele viria a atender também outros interesses, incluindo os dos fabricantes de pneus e asfalto. Carros e caminhões produzidos com chapas da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN justificavam a engenharia política do presidente Getúlio Vargas, que a fim de viabilizá-la precisava de asfalto e energia para pavimentar o desenvolvimento de nossas – então vigorosas – construtoras. Dessa forma, criaram-se empregos ao mesmo tempo em que se contemplaram interesses.
O modal ferroviário, assim, viria a perder espaço continuamente no embate com os interessados na priorização do pneu e da estrada. Como oceanos e rios não se asfaltam, e o navio prescinde da logística aplicada ao pneu, não foi diferente com o transporte aquaviário. Ao longo das décadas seguintes, ocorreu a diminuição progressiva da participação dos modais aquaviário e ferroviário na estratégia de transporte do governo brasileiro. A tal ponto que, em 1965, o Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes – Geipot, vinculado ao então Ministério de Viação e Obras Públicas, chegou a ter 230 técnicos dedicados ao planejamento do transporte terrestre contra apenas 16 trabalhando no marítimo.
Construção da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN Arquivo Nacional |
Caminhão da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN Foto: Werner Keifer | flickr |
Fato curioso é que naquela mesma década foi idealizado o 1º Programa Nacional de Construção Naval. Desenvolvido nos anos 1970, foi extinto na década seguinte com um natimorto 2º Programa, que previa destinar US$ 3,3 bilhões à construção de dezenas de navios, mas desaguou no famigerado caso Sunamam, um escândalo financeiro de proporções bíblicas protagonizado pela antiga Superintendência Nacional da Marinha Mercante. Foi uma época marcada por navios construídos e não recebidos; outros construídos e recebidos, mas não pagos; e, ainda, navios que surgiram misteriosamente e chegaram a originar novas empresas. Fatos que nunca foram devidamente esclarecidos, mesmo com as extensas investigações do caso.
Novela de 1972 abordou o tráfico de influências e a facilidade com que se entrava na atividade marítima naquela época |
O tráfico de influências marcou o início dos anos 1970 como um período em que qualquer indivíduo podia se transformar em armador da noite para o dia, ao custo apenas da água do mar. A atividade se tornou tão popular que até uma das telenovelas de maior audiência da época, “Selva de Pedra”, tinha como pano de fundo da trama um estaleiro. Não foi com surpresa, portanto, que testemunhamos o esgotamento desse cenário nos anos 1980. A morte e o enterro simbólico viriam a acontecer no fim da década de 1990, com o programa Navega Brasil, conhecido na beira do cais como “Naufraga Brasil”.
De lá para cá, o que tivemos foram mudanças na legislação do setor que facilitaram a contratação de novas construções (mas nunca em número significativo), o naufrágio do Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro – Promef e, como exceção bem-sucedida, uma política para o offshore que, apesar das críticas que se possa fazer a ela, é o que de melhor temos nos dias atuais.
Vidas humanas: carga que influencia na legislação
O modal aéreo tem um divisor comparativo muito específico, que é o transporte de passageiros. Vidas humanas são incomparáveis a qualquer outro tipo de carga, por maior que seja o valor agregado. Ao se carregar um navio, as preocupações vão de seguro a prazos e condições de entrega da mercadoria. Quem embarca em um avião, por sua vez, se importa acima de tudo em chegar vivo ao seu destino. Essa premissa tem um peso particularmente grande quando as vidas em jogo são as daqueles que legislam e das autoridades responsáveis pela regulamentação e fiscalização do setor de transportes. O fato de serem eles mesmos a “carga” do setor aéreo explicaria por que esses indivíduos são mais flexíveis quando tratam da vida alheia, mas se mostram mais rigorosos ao tratar de suas próprias.
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O rigor no transporte de passageiros não é característica apenas do setor aéreo brasileiro. Aonde quer que se vá, é possível encontrar cargas de navio sendo cuidadas por trabalhadores miseráveis, de países de baixo custo, com certificação obtida sabe-se lá como. No entanto, o mesmo jamais ocorreria no transporte de passageiros. Tomemos como exemplo uma embarcação que trafegue pelos fiordes noruegueses, região com um dos mais altos custos de vida do mundo. É quase certo que ela seja conduzida por um marítimo nacional, realidade que vem de longa data. “Enquanto na aviação comercial, inclusive em rotas internacionais, a presença de tripulantes brasileiros nas aeronaves nacionais é uma exigência legal, é com muito custo que os marítimos brasileiros se mantêm a bordo dos nossos navios, sendo continuamente ameaçados de substituição por mão de obra mais barata. Sempre foi assim e é impossível não se indignar com tal fato. Cortes nos custos falam mais alto que o drama social do desemprego e, até mesmo, que a ameaça de que não haja mais a formação de brasileiros e brasileiras preparados para o trabalho no mar”, explica Severino Almeida, presidente da Conttmaf.
BR do Mar colocará a cabotagem brasileira definitivamente nas mãos de armadores estrangeiros?
O transporte de cargas de alto valor agregado, aquelas que mais atraem o interesse da armação internacional para a cabotagem brasileira, já ocorre sob o domínio de empresas estrangeiras que formam um oligopólio no setor de contêineres. Três empresas brasileiras de navegação detêm 99% do transporte de contêineres na cabotagem nacional: a Aliança Navegação e Logística, a Mercosul Line Navegação e Logística e a Log-In Logística Intermodal. As duas primeiras movimentam mais de 70% dos contêineres na costa brasileira e no Mercosul, sendo controladas pelos grupos Maersk e CMA-CGM, respectivamente. Esses dois mega-armadores, por sua vez, fazem parte das duas maiores alianças internacionais de transporte marítimo: a 2M Alliance (Maersk Line e MSC) e a Ocean Alliance (Cosco Shipping Lines, CMA CGM, OOCL e Evergreen), que controlam mais de 60% do transporte mundial de contêineres. Com atuação global, esses gigantes da navegação dispõem de abundantes recursos para defender seus interesses onde quer que atuem.
O oligopólio que controla o transporte de contêineres
A história do Brasil, assim como a de outras nações com relevância no cenário econômico internacional, registra fatos que reforçam o entendimento de que pode ser extremamente nocivo para o país que sua cabotagem seja controlada unicamente por empresas estrangeiras ou por empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro. A fim de atender aos interesses nacionais, a Marinha Mercante brasileira precisa contar com infraestrutura e portos para comportar as demandas específicas da cabotagem, assim como dispor de estaleiros locais com capacidade efetiva de construção e reparo de embarcações.
Além da importância econômica direta, a navegação de cabotagem gera oportunidades de emprego para trabalhadores a bordo dos navios, nos portos, nos estaleiros e no atendimento da cadeia logística envolvida. No entanto, entre as nações com maior poder marítimo na nossa região (Brasil, Argentina e Venezuela) somos a que menos protege a participação de seus marítimos nacionais na cabotagem, fato que pode ser agravado pela nova legislação, ainda que o propósito declarado seja incentivar a cabotagem nacional. O Chile, quarta maior economia da região, por sua vez, é totalmente dependente do exterior no quesito transporte marítimo de mercadorias e tal fato vem contribuindo para agravar a crise econômica e social que o país atravessa.
É preciso haver coerência no emprego de brasileiros nos diferentes modais de transporte
A organização sindical marítima brasileira, representada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Aéreos, na Pesca e nos Portos – Conttmaf, pela Federação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Afins – FNTTAA, pelo Sindmar e por sindicatos coirmãos, defende a existência de uma cabotagem nacional com valor estratégico para a atividade econômica do país e que atenda aos interesses dos brasileiros. Isso equivale a dizer que o transporte marítimo entre pontos do nosso território deve ser realizado por embarcações de bandeira brasileira tripuladas por marítimos nacionais. A prioridade na cabotagem precisa ser dos navios brasileiros, cujos proprietários têm de ser empresas locais de navegação, constituídas com significativa participação de capital nacional. De modo complementar, e dentro de certos limites, navios de outras bandeiras afretados por empresas de navegação brasileiras poderiam ser autorizados pelo Estado a operar na cabotagem.
Para qualquer observador atento, salta aos olhos a falta de coerência com que nossa legislação trata a garantia de emprego de brasileiros no setor marítimo. Fato que fica ainda mais evidente na comparação com o modal aéreo. A legislação nacional assegura que o exercício das profissões de piloto de aeronave, mecânico de voo e comissário de voo em nosso país seja privativo de brasileiros natos ou naturalizados, e que a utilização de comissários de voo estrangeiros pelas empresas brasileiras seja limitada a um terço dos embarcados, caso estejam operando em rotas internacionais. Já no setor marítimo, a legislação estabelece que, em embarcações de bandeira brasileira, o comandante, o chefe de máquinas e 2/3 da tripulação sejam brasileiros. Por outro lado, permite a participação de navios de outras bandeiras na cabotagem nacional, caso em que apenas 1/3 dos marítimos embarcados precisam ser brasileiros e, ainda assim, somente após 180 dias de operação contínua do navio em nossas águas.
A compreensão de como se chegou a essa situação passa por uma breve análise do processo político brasileiro e dos interesses que influenciaram a produção da legislação do setor. O Código Brasileiro de Aeronáutica é anterior à atual Constituição Federal, não tendo sofrido grandes alterações motivadas por novas políticas governamentais para o setor de aviação. Já a nossa Marinha Mercante, que se encontrava protegida em artigos das Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, sofreu fortes ataques em governos com visão neoliberal posteriores à promulgação do atual texto constitucional.
A Constituição promulgada em 1988 previa a proteção da Marinha Mercante brasileira e da nossa soberania, com garantia de participação de navios, armadores e marítimos nacionais em nossa cabotagem. No ano de 1995, porém, o governo de Fernando Henrique Cardoso aprovou no Congresso Nacional a Emenda Constitucional nº 7, que modificou substancialmente essa realidade, fazendo prevalecer interesses dos armadores internacionais e permitindo a participação de navios estrangeiros na cabotagem sem empregar brasileiros. Em grande parte, tal alteração foi motivada por um eficiente lobby da armação internacional, chegando ao ponto de eliminarem do texto constitucional a obrigatoriedade de serem brasileiros o comandante e 2/3 da tripulação nos navios com bandeira brasileira.
Foi preciso um grande investimento de tempo e recursos das entidades sindicais marítimas, além de competente atuação de seus dirigentes, para que o ataque aos marítimos nacionais fosse amenizado, dois anos mais tarde, em lei. Foi fundamental a contribuição do Sindmar e de seu então presidente Severino Almeida para que o texto da Lei 9432/1997 introduzisse dispositivos garantindo que nos navios com nossa bandeira devessem ser nacionais o comandante, o chefe de máquinas e 2/3 da tripulação. A RN 72/2006 do Conselho Nacional de Imigração (transformada na RN 6 em 2017) estabeleceu o emprego de marítimos brasileiros em navios estrangeiros na cabotagem, porém, em quantidade inferior aos 2/3 de brasileiros em parte das embarcações autorizadas a operar em nossas águas.
Falta de transparência na elaboração da BR do Mar prejudica trabalhadores marítimos brasileiros
O governo não tem divulgado informações suficientes que permitam o acompanhamento das ações de suposto incentivo à navegação de cabotagem. A falta de transparência na produção da nova legislação tem levado a graves equívocos que, em grande medida, distorcem os objetivos genuínos de um necessário incentivo à cabotagem.
Um exemplo disso é a tentativa de utilização indevida da MLC-2006 da Organização Internacional do Trabalho como parâmetro laboral em águas brasileiras. O Sindmar alerta sobre o fato de que a recente ratificação da Convenção pelo Brasil de forma nenhuma pode ser entendida, como sugerem alguns armadores, como uma obrigação em praticar as condições mínimas que foram estabelecidas com o objetivo de evitar o trabalho escravo e a exploração laboral a bordo de navios de bandeiras de conveniência. A MLC-2006 registra, logo em seu preâmbulo, que a sua adoção ou a sua ratificação por um estado-membro em nenhum caso deverá ser motivo para afetar qualquer lei, garantia, costume ou acordo que garanta condições mais favoráveis para os trabalhadores.
Além de ser coerente que os postos de trabalho gerados por incentivos governamentais a armadores em águas brasileiras sejam ocupados por trabalhadores marítimos nacionais em condições de trabalho compatíveis com a realidade brasileira, isso é algo que evidentemente não ocorre no longo curso, onde predominam trabalhadores de países de baixo custo.
Outra questão que impacta de modo negativo os interesses genuinamente nacionais dentro desse programa é a visão distorcida que volta e meia se apresenta sobre a navegação de cabotagem, comparando-a à navegação de longo curso, inclusive no quesito tripulação. A navegação de cabotagem conta com condições oferecidas – ou que se pretenda oferecer – pelo Estado brasileiro aos armadores, como subsídios, proteções e isenções, o que se dá na preferência de utilização de navios, pagamento de impostos, aquisição de embarcações novas no exterior e incentivos à construção em estaleiros nacionais. Já a navegação de longo curso é um setor em que não há participação da bandeira brasileira, exceto no setor de petróleo, e que não conta com incentivos concretos à indústria nacional. “Além de ser coerente que os postos de trabalho gerados por incentivos governamentais a armadores em águas brasileiras sejam ocupados por trabalhadores marítimos nacionais em condições de trabalho compatíveis com a realidade brasileira, isso é algo que evidentemente não ocorre no longo curso, onde predominam trabalhadores de países de baixo custo. A confusão entre função e categoria dos marítimos a bordo dos navios é mais um equívoco gerado pela falta de informação sobre a BR do Mar”, diz Odilon Braga, diretor do Sindmar.
O comando e a chefia de máquinas nos navios de mar aberto que atuam na cabotagem brasileira são funções exercidas por marítimos devidamente certificados e capacitados, em conformidade com as Normas da Autoridade Marítima Brasileira (Normam). Via de regra, os comandantes e os chefes de máquinas devem ser oficiais nas embarcações com arqueação bruta acima de 500 e potência de máquinas superior a 3.000 kW, respectivamente. Em embarcações menores de mar aberto, tais funções podem ser exercidas por marítimos subalternos. Ainda assim, parece haver alguma confusão entre as funções de cunho gerencial exercidas pelos profissionais a bordo e o nome das categorias de marítimos que podem exercê-las, fato que se constata quando a proposta do programa de governo registra determinadas categorias marítimas como necessárias a bordo. Diferentes categorias marítimas podem ser empregadas nas funções de bordo, observadas as características das embarcações e as capacidades e treinamentos requeridos para os tripulantes designados para exercê-las, conforme previsto na Normam.
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A organização sindical marítima brasileira sempre externou que estaria disposta a apoiar um programa de incentivo à cabotagem cujas premissas incluíssem a obrigatoriedade de serem brasileiros o comandante, o chefe de máquinas e 2/3 da tripulação em todos os níveis hierárquicos e seções de bordo, com clara preferência de que os navios arvorem a bandeira brasileira. “Não faria sentido algum apoiar iniciativas que não contemplem a participação de marítimos brasileiros em número significativo a bordo dos navios, assegurando a possibilidade de trilharem as carreiras marítimas. A atividade a bordo dos navios segue rígida hierarquia estabelecida em convenção internacional ratificada pelo Brasil. A ascensão profissional do marítimo é possível mediante a realização de treinamentos e comprovação de tempo de embarque”, esclarece Carlos Müller, presidente do Sindmar.
Em nenhum país do mundo é possível um marítimo sair da academia, recém-formado, já com a competência necessária para comandar e chefiar navios mercantes. Para alcançar as posições que requerem maior experiência a bordo, a legislação internacional exige que o marítimo comprove tempo de efetivo embarque nas funções imediatamente anteriores, até mesmo como pré-requisito para inscrever-se nos cursos necessários para progressão de categoria. Se não é oferecida a possibilidade de embarque nas funções iniciais e intermediárias da carreira, englobadas nos 2/3 da tripulação historicamente adotados na legislação nacional, também não haverá oportunidades para que os jovens marítimos possam adquirir o tempo de embarque exigido e, anos mais tarde, possam alcançar as posições de comando e chefia de máquinas. Em verdade, tal iniciativa coloca em risco de destruição o sistema formador de mão de obra marítima nacional, com significativo impacto na oficialidade mercante. Dito isso, resta ainda ressaltar que também não faz sentido que a legislação, em vez de assegurar 2/3 de tripulantes brasileiros nos navios afretados de outras bandeiras, registre uma ou duas categorias intermediárias a bordo como obrigatórias, em detrimento das demais, que, no conjunto, asseguram a possibilidade efetiva de carreiras profissionais no mar.
A cabotagem do Brasil deve estar nas mãos dos brasileiros!
O mercado de trabalho marítimo no Brasil passa pelo pior período dos últimos 20 anos. O alto índice de desemprego no setor é, em grande parte, decorrente da iniciativa dos armadores de convencer a Marinha do Brasil de que ocorreria um “apagão” de mão de obra marítima em águas nacionais a partir de 2015, utilizando para isso projeções infundadas. Muito embora o Sindmar tenha provado que havia equilíbrio no mercado de trabalho, com base em estudos que apontavam nesse sentido, a Marinha do Brasil seguiu formando oficiais mercantes em número extremamente alto, introduzindo no mercado de trabalho centenas de novos oficiais que continuam buscando, sem sucesso, oportunidades de embarque, alguns por mais de quatro anos. É difícil explicar e mais ainda aceitar que em lugar de assegurar postos de trabalho para seus nacionais, a opção escolhida para nortear um programa de incentivo à cabotagem nacional possa privilegiar a oportunidade de lucros ainda maiores para armadores de apetite insaciável que desejam empregar trabalhadores estrangeiros de países de baixo custo, desconsiderando os anseios de milhares de brasileiros que almejam trabalhar nas águas de seu próprio país.
Caso não se observem os interesses nacionais e não se trate a Marinha Mercante brasileira como setor estratégico para a economia nacional, dentro de um programa governamental, corre-se o risco de se sacramentar a total dependência do transporte marítimo de nosso país, inclusive na cabotagem, e sua submissão aos interesses de outras nações.
A dependência de outras bandeiras para que o nosso transporte aquaviário seja efetivado já é incontestável no longo curso. Para uma nação que detenha liderança ou relevância mundial na produção de alimentos e de produtos agropecuários, minerais e de petróleo, não é aconselhável que toda sua logística de transporte marítimo seja controlada por outros governos. “Caso não se observem os interesses nacionais e não se trate a Marinha Mercante brasileira como setor estratégico para a economia nacional, dentro de um programa governamental, corre-se o risco de se sacramentar a total dependência do transporte marítimo de nosso país, inclusive na cabotagem, e sua submissão aos interesses de outras nações. Até mesmo as nações que se destacam mundialmente por adotarem as posições mais liberais na economia não abrem mão de uma Marinha Mercante nacional forte e representativa, que possa contribuir como garantia de segurança logística, comercial e alimentar para sua população em época de paz e em momentos de conflito”, conclui Carlos Müller.
Nos EUA, republicanos e democratas se unem para exigir que parte da exportação de petróleo e gás seja transportada em navios americanos
Enquanto a Petrobras dá prioridade ao afretamento de navios estrangeiros – sob forte lobby dos armadores europeus e omissão do governo e do Congresso brasileiros – parlamentares dos EUA, com visões políticas opostas, se unem para defender os interesses nacionais dos norte-americanos.
O deputado democrata John Garamendi e o senador republicano Roger Wicker apresentaram um projeto de lei bipartidário que visa impulsionar as indústrias de construção naval e marítima do país, exigindo que uma porcentagem crescente das exportações de GNL e petróleo bruto seja transportada em embarcações fabricadas nos Estados Unidos, com bandeira e tripulação norte-americanas.
A lei H.R.3829, denominada “Energizing American Shipbuilding Act”, exigiria que, até 2041, 15% do total das exportações de GNL por via marítima fossem transportados por navios norte-americanos e, até 2033, que o mesmo ocorresse com 10% do total de petróleo bruto exportado.
Segundo seus apoiadores, a promulgação da lei resultaria na construção doméstica de dezenas de navios, criando milhares de empregos, e impulsionaria a fabricação doméstica de componentes de embarcações e as próprias indústrias marítimas. De acordo com uma estimativa do Conselho de Construtores Navais da América, a lei resultaria na construção de mais de 40 navios: aproximadamente 28 transportadores de GNL até 2041 e 12 petroleiros até 2033.
“O aumento das exportações norte-americanas do GNL estratégico e do petróleo bruto representa uma oportunidade única para criar novos empregos de classe média, fortalecendo a indústria naval nacional, a indústria avançada e as indústrias marítimas – fundamentais para a segurança nacional e para a nossa capacidade de projetar as Forças Armadas norte-americanas no exterior. Nosso projeto de lei bipartidário faz face a iniciativas similares de outros países exportadores, incluindo a exigência de embarcações de bandeira russa para exportações de petróleo e gás natural do Ártico anunciadas pelo Kremlin em dezembro de 2018. Os marítimos e os estaleiros norte-americanos estão prontos para o trabalho, e nosso projeto de lei garante que eles não precisarão mais competir com os estaleiros estrangeiros altamente subsidiados da Coreia, da China e de outros locais”, afirmou Garamendi.
Seu colega, Roger Wicker, acrescentou: “Essa legislação fortaleceria nossa indústria de construção naval, apoiaria os empregos marítimos americanos e garantiria que os Estados Unidos tivessem embarcações suficientes para transportar petróleo e gás natural em tempos de conflito. Nossos rivais geopolíticos investiram pesadamente em sua capacidade de construção naval, e os EUA devem manter o mesmo ritmo.”