Em 1918, nos estertores da Primeira Guerra Mundial, nossa frota enviada para contribuir no esforço de guerra fora avisada, previamente, sobre o risco de ataques de submarinos alemães no Estreito de Gibraltar. Ao lá chegar, confundiu um cardume de toninhas com um submarino e as abateu a tiros.
Recordo-me sempre desse episódio quando a questão sobre a formação de novos Oficiais para a Marinha Mercante passa a ser um ponto notável em nosso horizonte. Além disso, me vem à mente outra imagem, muito forte, que me acompanha há mais de meio século. A figura do meu pai, sentado em seu canto favorito e, preocupado em me formar para a vida adulta, chamando minha atenção para o fato de que jabuti não sobe em árvore. Ele insistia para que, caso me deparasse com tal situação, eu não me limitasse a concluir o óbvio. Sempre que a situação, de alguma forma, me afetasse, eu deveria me questionar sobre o motivo da iniciativa.
A realidade presente na formação profissional de Oficiais mercantes motiva-me a lembrar de toninhas e de jabutis. É uma realidade que, por dever de ofício, a Marinha do Brasil deve conhecer melhor do que qualquer organização ou instituição. Uma situação que, por si só, impõe – ou deveria impor – uma prática racional ao uso de recursos públicos produzidos ou não, no interior do próprio setor. De janeiro do ano passado até julho deste ano, foram lançados, no mercado de trabalho, exatos 700 novos Oficiais. A eles, somar-se-ão outros 700, até o início do próximo ano, e o ciclo se repetirá, adicionando-se mais de três centenas e meia de novos profissionais que estão encerrando seu terceiro ano e concluirão suas praticagens em 2019.
Somando-se a esses números os decorrentes da formatura de cursos de acesso e do retorno de profissionais ao setor, se ultrapassam, com folga, dois milhares de novos profissionais. Isso em um setor que sofreu significativa redução de tamanho, muito especialmente, pela política de desinvestimento da Petrobras e pela ausência de política que promovesse soerguimento do setor. A decisão tomada, junto com ao Prepom 2018, de oferecer 285 vagas nas Escolas de Formação de Oficiais da Marinha Mercante para o próximo ano lança-me ao encontro das toninhas e dos jabutis.
Mesmo conhecendo o fato de que nossos empregos estão, diretamente, relacionados à existência das embarcações na cabotagem e no apoio marítimo, a Marinha do Brasil oferece aos armadores instalados em nosso país novos Oficiais mercantes, formados ao longo de dois anos, em número correspondente a cerca de um terço dos postos de trabalho existentes e já ocupados. Postos esses, não raro, construídos ao longo de décadas. Como agravante, observamos que, em grande parte, esses empregos flutuam em cascos, desafiando as leis da física e considerando a idade média deles.
Sabedora da grave responsabilidade que tem em manter disponíveis para o mercado marítimos qualificados, nos últimos anos, a Marinha do Brasil tem cumprido o seu dever, atirando a esmo, matando a chance de permanecer em seu trabalho quem, no passado, decidiu por, nele, se especializar ou, no presente, é convencido de que a nossa atividade oferece um canal profundo em possibilidades e em compensações.
Em meio a essa artilharia, nos choca um drama dos mais antigos. No mundo civil, a conquista de um emprego – ou o esforço para manter-se em um – é mais demorada na casa dos 40 anos; torna-se difícil na casa dos 50 anos e impossível aos 60. O drama do desemprego, cujas consequências já chocam entre os mais jovens, é ainda pior entre os mais antigos. Um drama que testemunhamos e nos obrigamos a testemunhar e a acompanhar de perto, sendo impossível não ficarmos indignados.
Na ausência de postos de trabalho para absorver a oferta de mão de obra, a Marinha do Brasil promove o desemprego justamente entre a camada mais antiga de Oficiais mercantes. Como agravante, registramos um fato inquestionável. Ao me formar, ainda nos anos 70, era comum um Oficial alcançar o comando ou a chefia entre 12 e 15 anos de exercício profissional. Hoje, o Oficial que não chegar à alta administração de bordo em meia dúzia de anos, vê cúmulos-nimbos de severo aspecto acompanharem sua futura e cambaleante carreira.
Como ninguém me convencerá de que os responsáveis por tais decisões são estúpidos, me resta refletir sobre esse jabuti e as razões que o levam a estar na árvore. O que, de fato, motiva a Marinha do Brasil a agir com tal ímpeto no exercício de sua competência? Eis a questão. Desde cedo, a vida me ensinou que argumentos frágeis, não raramente, escondem a ausência de argumentos verdadeiros, notadamente quando nossos interlocutores se sobressaem em inteligência e em perspicácia.
Diante do mistério que se apresenta, olho para o jabuti como se olhasse para uma esfinge quase a me devorar. Em contrapartida, ouço argumentos envolvendo a manutenção das estruturas das escolas, ou a ampliação do número de técnicos e de bacharéis, em uma sociedade que prima pelo desemprego, esquecendo-se do foco e do objetivo para o feitio de tais cursos.
Fala a favor dos responsáveis pelas mortes das toninhas a inexistência de equipamentos mais sofisticados para melhor identificação do que não se vê com exatidão, o que era fato em 1918. Nos tempos atuais, nos resta a indignação ao testemunharmos velhos marinheiros sendo atingidos em seu orgulho, em sua confiança e em seu profissionalismo, tornando-se vítimas de decisões injustificáveis até agora.
Quanto ao jabuti, continuamos a pensar e a refletir.
A esperança de encontrarmos respostas à decisão da Marinha do Brasil de formar jovens para o desemprego, que esteja à altura de sua contribuição para a história do nosso país, não desapareceu. Seja como for, qualquer resposta que explique tamanha insensibilidade social, dificilmente, irá enobrecê-la.
Saudações marinheiras,
Severino Almeida Filho
Presidente do SINDMAR e da CONTTMAF