Com estratégia e visão de longo prazo, China expande sua capacidade de transporte marítimo e estabelece novo paradigma. Enquanto isso, política brasileira para o setor vai a pique
Neste momento, em que o mundo inteiro acompanha, com atenção e preocupação, as oscilações da economia chinesa que geram reflexos em diferentes cadeias produtivas, a China afia suas garras, defendendo seus interesses e mostrando a importância do planejamento estratégico para alavancar o desenvolvimento econômico sustentável. Amplia e diversifica seus horizontes a longo prazo, fortalece seu mercado interno e fomenta a criação de milhares de novos postos de trabalho. Gigante também do transporte marítimo internacional, a China prepara-se para expandir, ainda mais, o seu domínio neste setor, com um plano de metas a ser conduzido em estreita parceria entre empresas e governo.
Enquanto isso, o Brasil caminha em outra direção, mergulhado na grave crise política que ameaça comprometer irremediavelmente o seu futuro. Para ficar apenas no âmbito do setor marítimo, como se não bastasse o triste fim do Promef – o Programa de Modernização e Expansão da Frota – é cada vez mais alarmante a intenção de se vender a Transpetro, subsidiária de transporte da Petrobras, sob o pretexto de reestruturação da empresa, afetada pelas consequências da operação Lava Jato.
Números que impressionam
Desde que iniciou seu processo de modernização, há 40 anos, a China saiu de um sistema fechado para se tornar a segunda maior economia do mundo, com uma indústria invejável em todos os setores, com a qual nenhuma nação compete em escala. Na última década, o crescimento chinês refletiu de tal forma em toda a economia mundial, que rompeu com o padrão de industrialização, revolucionando os paradigmas de produtividade existentes até então. Não é à toa que se diz que “quando a China espirra, o mundo inteiro cai gripado”.
A atual desaceleração chinesa – a previsão de crescimento está entre 6.5% e 7% nos próximos cinco anos – revela, antes de tudo, uma mudança na condução da economia. Em vez de crise, oportunidades. Áreas como tecnologia, serviços e energia limpa continuam a crescer e a gerar empregos. E os empregos têm ganhado qualidade à medida que o governo chinês investe na melhoria da educação.
Em artigo recente para o jornal Correio Braziliense, o Embaixador da China no Brasil, Li Jinzhang, faz uma avaliação sobre a economia chinesa e seus desafios atuais, destacando que, em 2015, o volume econômico da China, que era de 10 trilhões de dólares, cresceu 6,9%, ou seja, mais de 600 bilhões de dólares, liderando as principais economias mundiais. Jinzhang citou, ainda, o aumento de 7,4% da renda per capita real e a criação de 13 milhões de novos empregos, lembrando que o nível de desemprego mantém-se baixo, em 5,1%. E prossegue:
“Em 2015, a China foi a segunda maior importadora do mundo, com volume de 1 trilhão e 680 bilhões de dólares. O investimento direto externo pela China chegou a ser de US$ 127,6 bilhões, 14,7% maior do que no ano anterior. O volume de commodities importado pela China e a sua participação mundial continuam crescendo. Em 2015, a importação chinesa de petróleo aumentou 8,8%, a de minério de ferro, 2,2%, e a de soja, mais de 44%. A China mantém a sua contribuição ao crescimento econômico mundial em mais de 25%. Sem crescimento chinês, o mundial minguaria de 3,1% a 2,4%”.
Já o Presidente Emérito do Conselho Empresarial Brasil-China, Embaixador Sergio Amaral, vê os chineses como mestres em contornar obstáculos. Ressalta o diplomata que, em vez de “bater de frente” ou optar por alternativas de curto prazo, os chineses se empenham em raciocínios e soluções mais duradouras . “Um exemplo para o Brasil”, declarou Amaral.
Em março passado, durante uma audiência pública sobre os acordos com a China, realizada pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, o ex-presidente da Vale, Roger Agnelli, que faleceria logo depois, vítima de um desastre aéreo, declarou sobre a desaceleração da economia chinesa:
“Os chineses sabem o que estão fazendo. Eles conhecem o mundo, sabem o que querem e têm uma estratégia. Têm planejamento de longo prazo e seguem rigorosamente o que foi planejado. Com essa disciplina de executar o planejamento, nos últimos 20 anos a China cresceu uma Alemanha a cada três anos. A diferença agora é que ela vai crescer uma Alemanha a cada quatro anos.”
O executivo sabia bem do que estava falando. Afinal, foi ele quem formulou a estratégia dos meganavios Valemax, no período em que presidiu a Vale (2001-2011). Estratégia que sofreu uma reviravolta, em 2012, quando a China vetou o acesso dos Valemax aos seus portos, como veremos a seguir.
China avança sobre o setor de transporte marítimo internacional
Em setembro do ano passado, o Conselho de Estado da China anunciou um ambicioso plano para o setor de transporte marítimo a ser implementado até 2020, com algumas das seguintes metas: reformas estruturais profundas no setor dos transportes marítimos; modernização dos setores empresarial e de serviços marítimos; reformas nos operadores sob controle estatal; melhora da competitividade nos mercados internacionais; desenvolvimento de ações relacionadas ao meio ambiente; desenvolvimento do transporte intermodal (marítimo e ferroviário) e do fluvial. Na ocasião, o vice-ministro dos Transportes, He Jianzhong, declarou que empresas e administração pública iriam trabalhar em conjunto e ativamente para a concretização desses objetivos.
O anúncio do plano de desenvolvimento para o setor de transporte marítimo ocorreu dois meses após o governo chinês decidir suspender o embargo imposto aos navios Valemax, que durava desde 2012.
A navegação marítima mundial deve muito à China. São chinesas as grandes invenções que surgiram no início do primeiro milênio – entre os séculos 1 e 3 d.C – e foram adotadas no Ocidente, particularmente na Europa, cerca de mil anos depois, como a bússola, o leme, os mastros múltiplos, os mapas e as cartas marítimas. Portanto, é fácil entender porque a China deverá ser bem sucedida em seu plano.
Hoje, a principal causa dos problemas enfrentados pelas empresas de navegação é, sem sombra de dúvida, a desaceleração industrial da China, segundo maior importador de commodities do mundo. Com a retração econômica no país asiático, diminuiu a demanda por materiais de construção como minério de ferro, bauxita e cimento. Os efeitos financeiros se disseminaram, passando das mineradoras para as transportadoras que levam essas cargas mundo a fora. A China, cuja desaceleração prejudica o setor de transporte marítimo, é a mesma China que está firmemente empenhada em dar as cartas neste setor.
Há algumas semanas, mostrando que a China está levando muito a sério o seu objetivo, foi amplamente divulgada a notícia de que três transportadoras chinesas – Cosco Group, China Merchants Group e ICBC Financial Leasing Co. – encomendaram a quatro estaleiros locais 30 supercargueiros, do tipo Valemax, que deverão ficar prontos a partir de 2018. Segundo analistas, com a medida a China deterá o controle de 30% das exportações de minério de ferro do Brasil até 2026, mantendo as tarifas de frete reduzidas por vários anos e pondo ainda mais pressão sobre as empresas ocidentais de transporte marítimo, que vêm lutando por contratos durante uma das crises mais longas do setor.
Esta notícia, somada ao episódio envolvendo os Valemax, ilustra bem a sagacidade chinesa e encerra uma importante lição, que deveria ser profundamente estudada e aprendida pelo Brasil.
O plano (quase) perfeito da Vale
Para enfrentar as grandes flutuações do frete internacional e visando a aumentar suas exportações de minério de ferro para a China, a mineradora brasileira Vale S/A lançou, em 2010, o megacargueiro Valemax, com capacidade para 400 mil toneladas, o dobro da dos navios Capesize, os maiores do mundo até então. As novas embarcações representaram um ganho enorme em escala, transportando mais cargas por viagem e reduzindo significativamente o preço do frete. Com isso, a mineradora tornou-se uma concorrente de empresas de transporte de granéis sólidos, especializadas na movimentação de matérias primas e commodities.
Sendo a China o maior comprador de minérios do planeta e destino de metade da produção da Vale, baratear o frete colocaria o Brasil em posição de vantagem em relação a competidores com melhor logística, como a Austrália, cujo minério chega aos portos chineses em apenas 15 dias, contra os 40 que o produto brasileiro viaja desde a partida de Carajás (PA). Capazes de atravessar o oceano com apenas 25 tripulantes, os Valemax também trouxeram mais eficiência a um custo menor, além de serem mais sustentáveis, emitindo 35% menos gás carbônico que um mineraleiro tradicional. O plano da Vale foi ambicioso: construir 60 navios.
A princípio, a China mostrou-se receptiva ao projeto. Afinal, seus estaleiros receberam a encomenda de 24 Valemax, metade deles financiada por dois bancos públicos chineses. Em dezembro de 2011, o primeiro Valemax atracou no noroeste chinês, descarregando, em 55 horas, 350 mil toneladas de minério, um recorde mundial. Um mês depois, porém, o Ministério dos Transportes da China vetou o acesso dos supernavios da Vale, alegando falta de segurança. Mas, a verdadeira razão do embargo teria sido a pressão da Associação de Armadores da China que considerou o Valemax como “uma questão de monopólio e concorrência desleal, que não só feria os interesses da indústria de transporte da China continental, mas também da Coreia do Sul, do Japão e de Taiwan”. A Vale, então, viu seus planos irem por água abaixo e apenas 18 dos 60 navios foram entregues, a um custo de US$2 bilhões.
Em julho de 2015, o governo chinês suspendeu o embargo. A essa altura, a Vale já havia vendido ou alugado seus megacargueiros para empresas chinesas, entre elas, a gigante estatal Cosco Group, cuja frota total é de 1.114 embarcações, com capacidade de 85.32 milhões de DWT (toneladas de porte bruto), o que a faz a primeira do mundo no setor de transporte marítimo, com mais de 1.000 empresas e filiais em mais de 50 países e regiões e 130.000 funcionários no total.
Agora, a recente encomenda dos 30 Valemax confirma o que já se sabia haver por trás do veto em 2012: de olho no domínio do transporte marítimo internacional, os chineses adquiriram navios Valemax que tinham ficado ociosos, suspenderam o embargo e, agora, anunciaram esta aquisição, que propiciará à China o controle das tarifas de frete marítimo pelos próximos 10 anos.
Transformando o Limão em Limonada
Apesar da “rasteira” dada pelos chineses e de outros fatores, no mês de abril passado, a Vale surpreendeu o mercado, ao registrar lucro de R$ 6,3 bilhões no primeiro trimestre do ano, revertendo o prejuízo de R$ 33,1 bilhões do quarto trimestre de 2015. Ao apresentar os resultados, o Presidente da Vale, Murilo Ferreira, declarou-se otimista em relação à China que, no primeiro trimestre, representou 42,9% da receita operacional da mineradora, configurando-se como a principal cliente da empresa. Dentre outros aspectos, a boa performance da Vale se deveu à queda de 20% nos custos do frete marítimo para o mercado chinês. De acordo com o Diretor-Executivo de Finanças da Vale, Luciano Siani Pires, a operação logística da empresa poderá até melhorar o desempenho, contando, para isto, com os navios Valemax aportando direto nos portos chineses.
Enquanto isso, no Brasil…
Na ocasião do embargo, em 2012, o governo brasileiro, que tem participação acionária na Vale, não deu sinais de que havia compreendido a magnitude da ação chinesa e suas graves consequências para o nosso já combalido setor marítimo.
Somando-se este fato ao que vem ocorrendo com a frota do Sistema Petrobras e a possibilidade de venda de sua subsidiária Transpetro, pode-se afirmar que a política de desenvolvimento para o setor naval brasileiro, que há alguns anos prometia levar o país a um novo patamar de crescimento econômico, naufragou de vez. O Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, previa a construção de 49 petroleiros e 20 comboios hidroviários. Passados 12 anos de sua criação (em 2004), foram entregues apenas 14 navios. E o número de cancelamentos de embarcações do Promef já supera o de navios entregues. Neste contexto, os marítimos brasileiros enfrentam uma grave ameaça: o desemprego.
Milhares de postos de trabalho podem vir a ser cortados ou reduzidos, sem que o governo brasileiro demonstre qualquer intenção de reverter a situação. Antes, muito pelo contrário, caminha para perpetrar um crime contra o País e a sociedade brasileira, caso insista na equivocada venda de ativos, ou seja, na venda da Transpetro e seus navios, em uma clara demonstração de gestão com visão míope, em que o interesse imediato do capital se sobrepõe ao que seria, de fato, o melhor para o Brasil.
Em artigo, reproduzido a seguir, o Presidente do SINDMAR, Severino Almeida Filho, compara a visão de longo prazo chinesa com as ações brasileiras, quase sempre de curtíssimo prazo, “visando a resultados imediatos e ignorando o interesse da Nação”. E ressalta que a consequência dessa falta de visão brasileira traduz-se no desmantelamento de organizações, na eliminação de postos de trabalho e na falta de perspectiva de um ambiente econômico mais próspero.
Para quem tem fé e acredita, o futuro pode até pertencer a Deus, mas é criado por ações e políticas visando ao cumprimento de um objetivo do Estado que deve ser permanente: o desenvolvimento econômico com justiça social. Enquanto o mundo reza pela China, seus governantes agem. Que isso sirva de lição para o Brasil!
Valemax – O gigante do mar
O Valemax foi projetado para navegar durante 30 anos. É o maior navio deste tipo do mundo, superando as dimensões e a capacidade do supergraneleiro Berge Stahl. Tem capacidade para carregar 400 mil toneladas de minério de ferro, o suficiente para construir 400 mil carros. O navio é feito de 46.000 toneladas de aço, tem 362m de comprimento, o equivalente a três campos de futebol, 65m de largura e 30,4m de altura. A carga é armazenada em sete porões, cada um do tamanho de uma quadra de tênis. O transporte de maior quantidade de carga por viagem levou a um corte nos custos de US$ 4 a US$ 6 por tonelada. É capaz de atravessar o oceano com 25 tripulantes e emite 35% menos gás carbônico. Barrado pelo governo chinês, em 2012, sob a alegação de falta segurança, contraditoriamente, o navio é tido como mais seguro e bem mais sustentável que os outros da categoria. O Valemax foi premiado com o Nor-Shipping Clean Ship Award, na Noruega, e o RINA Award Significant Ship, do Royal Institute of Naval Architects.