Por Paulo Fernando Pinheiro Machado*
A intenção do governo em apoiar o desenvolvimento do transporte aquaviário, em especial das hidrovias e da cabotagem, é, sem dúvida, um primeiro passo para resolver o gargalo logístico do país. O hidroviário já foi, historicamente, um dos principais meios de transporte do Brasil, cuja diminuição de participação na matriz é mais uma prova do processo de perda de capacitação e conhecimento naval pelo qual passa o país. Reverter esse processo de empobrecimento intelectual deve ser a prioridade máxima do governo.
O Ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, acerta ao apontar os custos de pessoal e de bunker como dois grandes entraves ao desenvolvimento do setor. A solução seria reduzir custos e abrir o mercado para investimentos privados. Há, contudo, riscos de grande magnitude nesse caminho. O governo precisa estar atento para que o fomento do modal aquaviário não se dê às custas do emprego dos marítimos brasileiros e da estabilidade econômica do país.
Os marítimos brasileiros prestam um serviço essencial ao setor, particularmente no tocante à segurança da navegação em portos e hidrovias brasileiros. Os práticos, mais especificamente, passam por intenso treinamento e têm a delicada função de garantir o atracamento seguro de embarcações que frequentam os portos nacionais. A redução dos custos de praticagem passa, primordialmente, por uma estratégia ampla e coordenada de investimentos em infraestrutura portuária, com o objetivo de aumentar a eficiência das operações, baixando assim os preços cobrados por todos os serviços ofertados e não apenas os da praticagem isoladamente.
Outro risco iminente, ao qual o governo precisa manter atenção redobrada, diz respeito às consequências para a empregabilidade dos marítimos brasileiros pelos acordos internacionais assinados pelo país. O setor naval é dominado por operadores estrangeiros que tendem, naturalmente, a empregar seus nacionais. Além disso, os custos de formação e de contratação dos marítimos brasileiros é sabidamente mais alto do que o de outros países, o que torna a contratação de marítimos nacionais menos atrativa do ponto de vista contábil das empresas. Se não for acompanhada de uma reforma trabalhista séria, a agenda positiva para o setor naval e a abertura ao capital estrangeiro põem em risco a empregabilidade e os meios de vida dos marítimos brasileiros. Isso sem contar os riscos à segurança da navegação que podem advir da contratação de pessoal sem o devido treinamento em águas brasileiras.
Já com relação aos custos de bunker, volto a insistir que esse é o tema mais importante para a economia brasileira no momento, mas que não está sendo debatido com a devida urgência nem pelo governo, nem pela sociedade civil. Estima-se que a nova regulamentação da OMI para 2020, estabelecendo um limite de 0,5% de conteúdo de enxofre para os combustíveis navais vai custar a cifra chocante de 15 bilhões de dólares por ano. Não é preciso um doutorado em economia para antever que a medida trará consequências dramáticas para diversos setores, especialmente, saúde, alimentação e, obviamente, política.
Alguns analistas e advogados brasileiros, por ignorância ou má-fé, afirmam que, como a mudança terá aplicabilidade global, a adaptação da legislação brasileira não criaria assimetria alguma no mercado. O argumento é pueril e ilógico. Ora, como os países possuem estruturas produtivas diferentes e se inserem de maneira igualmente diferente no mercado global, uma alteração genérica tem de, logicamente, afetá-los de maneira distinta. O Brasil será particularmente prejudicado pela mudança por ser um país 100% cargo, isto é, nós não temos nem navios, nem refinarias que produzam o combustível exigido pela OMI, o que nos torna presa fácil para arcar com os custos de adaptação global da indústria marítima. Se não nos opusermos à regulação da ONU, corremos o sério risco de enfrentar uma recessão econômica, já que tudo ficará mais caro para o consumidor brasileiro.
Esses mesmos analistas sonham que os afretadores poderão, sozinhos, absorver o choque de custos. Falso. Muitos transportadores já anunciaram formalmente que vão repassar os custos para aos produtores. Além disso, o Financial Times alertou recentemente para os riscos de uma recessão global causada pela medida da ONU. Tudo ficará mais caro, incluindo, especialmente, produtos de primeira necessidade, como medicamentos, vestuário e alimentos. É mesmo patético que alguns advogados tupiniquins pretendam entender mais de economia do que o Financial Times.
O governo federal, por sua vez, estuda coordenar-se com os estados para reduzir o impacto da medida por meio de diminuição da alíquota do ICMS. Não parece correto que o governo abra mão de receita para facilitar a adaptação das transportadoras estrangeiras. Passar a conta para o contribuinte brasileiro não só é injusto como claramente errado. O governo precisar estar atento às consequências políticas e econômicas das soluções propostas, porque, ao fim e ao cabo, alguém acabará pagando essa conta anual de 15 bilhões de dólares.
A única saída racional é uma tomada de posição firme do governo. O Brasil precisa aliar-se aos Estados Unidos para suspender a adoção da medida, pelo menos até que mecanismos de mitigação dos custos para os países mais expostos sejam debatidos e implementados. Do contrário, o produtor, o consumidor e o contribuinte brasileiros correrão o risco de arcarem, praticamente sozinhos, com uma conta internacional bilionária. E isso não pode ser permitido.
A agenda positiva para o setor aquaviário, em suma, é um passo importante para a retomada da indústria naval no Brasil. Entretanto, o governo e a sociedade civil precisam estar alertas às consequências das medidas propostas, para que setores da economia nacional não sejam desproporcionalmente afetados por uma estratégia adotada às pressas. O tema é grave e precisa ser debatido com a importância devida.
*Paulo Fernando Pinheiro Machado é ex-diplomata, advogado e árbitro especializado em assuntos marítimos internacionais.
Fonte: Portos e Navios