A origem
Recentemente, tomei conhecimento de que Capitães de Longo Curso, contrariados, iriam me procurar para conhecer a nossa visão do que foi exposto no artigo “O Capitão de Longo Curso”, assinado pelo CLC José Menezes – experiente marinheiro, Comandante, a quem conheço pessoalmente e por comentários – e publicado no Boletim Eletrônico nº 146, do Centro dos Capitães da Marinha Mercante – CCMM. Lá se vão quarenta anos desde que alguns de meus colegas de EFOMM com ele embarcaram pela primeira vez, como estagiários ou praticantes, quando ainda jovem Oficial mercante e entusiasta da profissão.
Diante desse fato, a leitura do texto tornou-se necessária, mas trouxe-me preocupação quanto à importância que se procura dar ao que não merece. Informei a meus pares, no SINDMAR, que eu não conversaria sobre o assunto, por recear que fossem agregadas interpretações equivocadas ao que eu viesse a falar. Contudo, registraria, por escrito, os comentários que esperava serem considerados em qualquer conversa sobre o tema. Estando na forma escrita, uma releitura poderia ajudar a eliminar eventuais entendimentos errôneos.
O mencionado artigo centra-se na divulgação da existência de CLCs merecedores do título e daqueles que foram denominados de “fakes” pelo autor, que utilizou a imagem do Vasco Moscoso de Aragão, hilário personagem criado pela genialidade do escritor Jorge Amado. Entre os focos de atenção do texto estão os jovens Oficiais. Por oportuno, ocorre-me focar no entusiasmo da citação sobre o orgulho de ser CLC via tempo de mar, em navios apropriados para tal conquista. Acompanho tal entusiasmo. Em qualquer um, conquistar aquilo que se tem como meta deve produzir sentimento de merecimento e compreensível orgulho. Não deve ser diferente do orgulho de quem se forma em outras profissões. Algumas, até, que exigem mais tempo e sacrifícios pessoais. Isso também depende do perfil de cada um. Existem seres humanos que, só em sobreviverem, já lhes são exigidos sacrifícios impensáveis e não percebidos por muitos. Sou honesto em registrar que acredito que o problema nasce quando o orgulho passa a restringir o bom senso e se torna consequência de uma vaidade desmesurada.
Do orgulho
Os Capitães fazem parte de um universo marinheiro com que o imaginário popular – assediado por séculos de curiosidade e muito mais estórias do que história – alcançava as pessoas em terra, desfilando monstros marinhos e finais de mundo que somente homens de invulgar coragem e determinação predispunham-se a enfrentar e tentar vencer. Agregue-se a isso que os Capitães, em um passado longínquo, formavam uma dupla singular com os proprietários dos navios. Na aventura marítima, estes últimos investiam no navio e eram aqueles que o armavam, tornando inquestionáveis seus gerenciamentos, controles e decisões. No princípio, como sabem, a expressão “os armavam” tinha o sentido literal. Canhões e armas compunham instrumentos de defesa (eventualmente de ataque) indispensáveis no mar daqueles tempos, até que a separação entre mercante e de guerra se configurou em definitivo. Como todos sabem, somos mais antigos do que as armadas das nações.
Sejamos honestos com nós mesmos. Hoje, via de regra, os navios recebem crescente gerenciamento de terra. O controle encontra na internet uma parceira confiável e as decisões são referendadas também em terra. Não raro, resta aos Capitães, sejam eles de Longo Curso, ou não, a sugestão de encaminhamento e o papel de feitores, em um cenário no qual sempre se encontra exceção para confirmar a regra. Se há algo que me daria intensa alegria é a comprovação de meu erro nesta avaliação. O que enxergo é uma crescente e preocupante disposição em cumprir-se, subalternamente, os caprichos da administração em terra, mesmo que esses tragam evidentes e evitáveis prejuízos às relações de trabalho.
Nos casos mais graves, chega-se a ostentar, quase com orgulho incontido, tal disposição. Se, no passado, o individualismo do comando à frente de sua tripulação alimentava-se na coragem de enfrentar desafios, hoje, especialmente no Brasil, é crescente a disposição em se colocar o individualismo a serviço dos interesses da administração em terra. O comando mercante, enquanto instituição, muito já perdeu com isso e, consequentemente, também os Capitães que o exercem. Medalhinhas, títulos e afagos, além de não proporcionarem o que lhes é devido, vão-se junto com os postos de trabalho e o respeito ao comando.
Dos possíveis biombos
Confesso que, às vezes, sou assaltado por desconfianças que podem não sobreviver a uma melhor reflexão. Do alto de suas questionáveis escolhas por se submeterem às vontades de seus empregadores, estariam alguns buscando confundir-se com aquelas imagens de determinação que nos trouxeram aos tempos presentes, personagens como um Capitão Ahab ou um Shackleton, tudo para disfarçar a falta de coragem para enfrentar a voluntariosa disposição de exploração de seu trabalho pelo seu empregador?
Como se sentem aqueles que, a despeito de suas determinações de seguirem a vontade de seus empregadores, constatam a posteriori que tanta dedicação só serviu para que as direções das empresas tivessem mais conforto para procederem a contratos fraudulentos ou obterem lucros exorbitantes? Moscoso de Aragão foi um personagem da imaginação de Jorge Amado, equanto Ahab e sua Moby Dick só existiram na ficção de Herman Melville. Ernest Shackleton, no entanto, foi um Comandante de carne e osso que, até hoje, é estudado como exemplo de liderança em várias universidades no mundo. Tanto os “fakes”, como Ahab, quanto os reais, como Shackleton, não deveriam fazer parte deste imaginário que, ao que tudo indica, parece confortar alguns marítimos de hoje. Shackleton principalmente, pois, apesar de chefe da expedição à Antártida, sequer era Capitão. Morreu como Primeiro Oficial da Mercante britânica, alcançando posto superior na Armada britânica por reconhecimento de seus feitos. O Capitão do Endurance era Frank Worsley, a quem a história não reservou igual importância.
“Fakes” ou não, estariam nossos CLCs aptos a desempenharem seus papéis em tempos como aqueles, assumindo o risco da aventura marítima e fazendo sua própria riqueza? Talvez.
Do título
Cada geração costuma ter seus heróis. Eu, pelo menos, tive e tenho os meus. Dentre os Capitães de Longo Curso, pois tenho meus heróis em outras categorias também, cito o Emílio Bonfante De Maria e o André Sabatié. Ambos formados no mar, o primeiro com destacada participação na política sindical. Excepcionais seres humanos e o teriam sido também em qualquer outra categoria. O título CLC, por si só, não adjetiva pessoas. Ninguém passa a ser extraordinário por receber este título nem deixa de sê-lo. A vida me deu condições de conhecer os extremos. Entre os embarcados, inclusive. Valorizo, como poucos, meu tempo no Offshore. Tenho a maior admiração por esses marinheiros, estejam no comando ou fora dele. Até porque, desde cedo, captei que comando é função, possível a várias categorias. Embora não conheça nem tenha conhecido qualquer Bonfante ou Sabatié entre eles, não quer dizer que não possam existir.
Há curiosidades a respeito. Um dos mais conhecidos marinheiros, cantado em verso e prosa, foi Joshua Slocum. Interessante é que sua fama não advém de sua interessantíssima experiência como Capitão de navios. Tendo naufragado no litoral do nosso país, retornou aos Estados Unidos em barco construído, por ele próprio, com o que sobrara do navio. Slocum é cantado por suas viagens ao redor do mundo, em solitário, a bordo de uma embarcação miúda, o veleiro Spray, a partir de Boston.
A prova definitiva de que a compreensão da alma marinheira não é escrava de determinada categoria ou função exercida a bordo encontra-se no fato de termos inúmeros marinheiros escritores. Para contribuir com o desmonte de quem acha que o título de CLC acompanharia a expressão maior do que representa ser marinheiro e viver no mar, lembro que o escritor marinheiro mais famoso, não por suas aventuras, mas pelas sensações captadas por sua escrita, é Joseph Conrad. Não se notabilizou no trabalho no mar como Capitão, e, sim, como Imediato.
Das impropriedades
Estimados companheiros e estimadas companheiras, antigos ou jovens, independentemente da categoria a que pertençam e das funções que exerçam a bordo, quero destacar que a questão levantada no mencionado artigo não é apropriada ao momento que vivemos. Não devido aos argumentos que alinhavei nestes comentários. Não, de forma alguma. Muitos outros podem ser agregados e, diria mesmo, de forma interminável. Importa é perceber que o imaginário que tanto enternece alguns exige o navio para poder subsistir. Nos dias atuais, impressiona a dificuldade quanto à percepção dos riscos em relação ao nosso futuro, sem que nos esqueçamos de que o presente já é, por si só, um cenário por demais incerto e duro de ser enfrentado. Se alguma chance temos de resistir e crescer, esta se encontra na unidade nas ações e nos esforços. Não é momento para se garimpar “fake” na CIR de quem quer que seja, questionando-se as condições em que foi conquistada. Talvez um dia, quando os ventos amainarem. No momento, dedicar-se a isso é buscar solução para quem deseja mais um problema.
O futuro com o passado ao fundo
Para encerrar, ilustrarei com um possível futuro vivido por um fictício e modernoso D’Artagnan. O velho e verdadeiro eu conheci. Sentava-se frequentemente no Pano Verde, restaurante que ficava quase na esquina da São Bento com a Rio Branco. E que eu, nos meados dos anos 80, visitava toda vez que ia tentar, sempre com insucesso, uma conversa no Sindicato com o genial Carlos Caminha Gomes, a quem, noves fora seus maus bofes, eu muito admirava.
D’Artagnan, experiente Comandante, já na pernada final de sua vida, lá costumava amarrar seu mirrado costado fragilizado pelo tempo, habitualmente cercado por moçoilas com clientela na Praça Mauá. Eu, ainda jovem Oficial mercante, olhava o quadro com particular interesse. Era óbvio que emanava daquele personagem uma forte mensagem para quem se dispusesse a lhe dar a devida atenção: ali estava o centro do mundo. No entanto, carros e pessoas passavam e aquele centro do mundo, aquela vaidade densa que se podia cortar no ar, condimentado com muito sal marinho, continuava a ser um impávido colosso amarrado, sem graça alguma, a um cais qualquer.
Hoje, relembro essas cenas, com carinho. Especialmente por saber que aquele velho marinheiro teve atendido seu orgulho, com navios a comandar e plateias, a seu gosto, a controlar. Os D’Artagnans de amanhã correm o risco de vivenciarem cenário muito pior, buscando as culpas e os culpados por não terem exercido seus comandos, em consequência de não mais haver bandeira brasileira em nosso mar nem legislação que proteja seus postos de trabalho. Talvez, como compensação, ainda discutiriam quem foram os verdadeiros CLCs ou os “fakes”.
Francamente, vocês merecem coisa melhor! A construção de defesas para que não ocorra o cenário acima não virá por doação. Como disse no início, não vão me encontrar para conversar sobre CLCs, “fakes” ou não, mas, seguramente, estarei a postos para dialogarmos sobre nossas possibilidades e ações de resistência. Há ameaças, muito mais urgentes, que necessitamos enfrentar juntos. Bons ventos a todos e todas!
Saudações marinheiras,
Severino Almeida Filho
Presidente do SINDMAR