Na terceira década do século passado, o maior dos estadistas que o Brasil já teve implementou uma verdadeira reforma sindical. A ferro e fogo, no primeiro momento, e por meio do voto, duas décadas depois. Para se ter mais claro o impacto da reforma, esta se deu enquanto ainda ressoava o brado de indignação dos empresários reunidos na Associação Comercial de São Paulo, especialmente os industriais. Estes também se organizavam naquela que foi a base originária da atual Fiesp e questionavam o que fariam as hordas sem trabalho aos domingos. Consideravam absurdo haver um dia de folga em uma semana de trabalho.
O presidente Getúlio Vargas fortaleceu o trabalho diante do capital, protegendo-o, principalmente ao estabelecer uma interlocução sindical com base na representação única de categorias, com financiamento independente e compulsório, mantido pelos próprios trabalhadores, entre outros importantes aspectos. Também adaptou esse financiamento ao interesse do seu poder central, nuance que não discutiremos aqui.
Foi uma reforma tão inteligente e impactante, que, passado quase um século de sua implementação, ela ainda demonstra ser a última barreira de proteção ao trabalho diante das ondas de destruição de direitos, tão ao gosto do capital, formadas por propósitos espúrios e discursos atraentes. A representação única de categorias tem, aos trancos e barrancos, sobrevivido até agora. Até mesmo diante da estupidez reinante no mundo sindical, agravada pela chegada em nossas praias de centrais sindicais com a ideologia e a visão de governar da social-democracia. Nesse enfoque, sobressai o interesse por um sindicalismo vertical, extremamente dependente de suporte financeiro, normalmente atendido em detrimento dos reais interesses dos trabalhadores e beneficiando organizações sindicais de práticas nefastas e discursos bonitos, que a mídia comprometida com o modelo destaca.
Com base no sindicalismo implementado por Getúlio Vargas, para ficarmos apenas nos maiores marcos de resistência, os trabalhadores brasileiros enfrentaram a onda neoliberal dos anos 80 e 90, enquanto o mundo sucumbia a ela. Tendo sido a nossa região atingida de forma agressiva, resistimos, ao contrário dos países limítrofes, mesmo com o exemplo de violência e insensibilidade social que era oferecido ao mundo por Margaret Thatcher. Resistimos também ao chamado Consenso de Washington, que assolou o mundo a partir do final dos anos 80, o que nos deu condições de sobreviver aos tempos do FHC sem avanços, mas com poucas perdas. Desses tempos, nós marítimos podemos nos orgulhar de termos sido a única categoria profissional brasileira que tentaram excluir de estatais e não conseguiram. Foi uma vitória da nossa organização sindical e não de sua base representada, registre-se, para sermos francos e educativos.
Ao longo dessas quase nove décadas de princípios baseados na reforma dos tempos de Getúlio, tivemos sobressaltos e perdas, mas nenhuma comparada àquela com que nos premiou o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI de número 5794, em 28 de junho último, que buscava restaurar o princípio de contribuição compulsória à sua organização sindical pelo trabalhador brasileiro. Contribuição que, na prática, representa pouco mais de oito centavos de real diários por cada salário mínimo recebido pelo trabalhador, mas que o livra da praga de ter sindicatos e sindicalistas sedentos por dinheiro e aptos a buscar financiamentos das formas mais abjetas possíveis. Melhor, possibilita-lhe uma estrutura independente, eficiente, autônoma em suas decisões, sem necessidade de Acordos Coletivos de Trabalho celebrados para sobrevivência de quem diz representá-lo.
Não por acaso, a ação foi proposta pela nossa Confederação, a CONTTMAF, cuja competência para produzi-la é inquestionável, tendo como patrono um marítimo, o incansável e brilhante Edson Martins Areias, advogado e Oficial Superior de Máquinas. Também não por acaso, tivemos ações atreladas a ela as quais se chegaram lenta, mas inexoravelmente. Um tanto envergonhadas, a princípio, até porque alguns desses amici curiae, como dito no jargão jurídico, no passado advogavam a extinção dessa contribuição, em mais um discurso oportunista para dourar a pílula do “boa noite, Cinderela” aos trabalhadores que diziam representar.
Resta, agora, aos trabalhadores, em um cenário muito mais inóspito, tentar manter suas conquistas a cada encerramento de vigência de ACT, buscando as correções de perdas salariais e os avanços sociais necessários ou desejados. Acabou aquela zona de conforto em que muitos cresceram e exerceram, ou ainda exercem, suas profissões. Na edição anterior de nossa revista Unificar analisamos as consequências da chamada reforma trabalhista, aprovada no ano passado. Vale a pena uma releitura.
Isso tudo, quando já instalado, causará sérios problemas em nosso mercado de trabalho. Para citarmos dois exemplos, mencionamos a Abeam e sua desonesta e absurda proposta de ACT; e as alterações estatutárias da Transpetro, conjuminando em um texto legal, em tramitação no Congresso Nacional, para sua absorção por grupo privado. Não esperamos, muito menos cobramos, que o nosso companheiro ou a nossa companheira, no dia a dia de seu trabalho, tenha clareza quanto ao que questões como essas possam representar em termos de manutenção do seu mercado de trabalho, tanto no apoio marítimo quanto na cabotagem. Menos ainda que tenham claras as consequências para pensionistas, viúvas de companheiros que já nos deixaram, que são dependentes de celebrações de ACT. São meros detalhes para quem, vivo e empregado, está sem perceber que a luz no final do túnel não é, necessariamente, o seu fim.
A visão exposta aqui, além de longa, não é de fácil compreensão. Mas se você chegou até aqui, alegre-se, porque tem chances de vencer esses tempos bicudos. Nem todos conseguem ir além do interesse em informações que chegam por meio de “memes” ou títulos de matérias de jornalecos comprometidos em satisfazer a estupidez humana. Bem ao gosto da Casa Grande, onde muitos morrerão sonhando viver, sem perceberem que isso não lhes é possível. Para a Casa Grande existir, a Senzala é necessária. O mal está no modelo e não importa a intensidade do esforço que você faça.
A boa notícia é que o SINDMAR deverá ser uma das poucas organizações sindicais que sobreviverão nesses novos tempos, graças à visão de sua administração, a mesma que levou à sua criação no ano 2000, após 12 infindáveis anos de campanha e dedicação dos unificadores de seus Sindicatos originários. E deverá sobreviver bem, tanto melhor quanto for a capacidade de seus representados em compreenderem a necessidade da filiação e de manterem-se filiados. Com sindicalização intensa, os estragos esperados nos direitos individuais e coletivos e nas relações de trabalho serão combatidos com eficiência. Caso contrário, nossa navegação sofrerá com mares duros.
Contudo, a quem não compreender isto restará a chance de ser um daqueles tolos dispostos a vestirem a camisa canarinho, acompanhando o pato da Fiesp na próxima campanha de um “Fora Dilma” de ocasião, acreditando, com fé, que toda crise é, antes de tudo, uma oportunidade. Neste caso, você tem razão em sentir-se ainda mais feliz. Se a crise já não bate à sua porta, ela não irá demorar.
Saudações marinheiras,
Severino Almeida Filho
Presidente do SINDMAR e da CONTTMAF